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Alguém para amar a vida inteira

O novo romance infanto-juvenil de Roniwalter Jatobá – Alguém para amar a vida inteira – do qual Vermelho reproduz o primeiro capítulo será publicado em abril pela editora Positivo.

Por Roniwalter Jatobá

Roniwalter Jatobá

Emília Emiliano

Levantou espreguiçando. Passou uma água nos olhos, penteou os cabelos bem perto do tanque. Vestiu a roupa que estava sobre a mesa da cozinha. Conferiu nova­mente os cabelos em frente ao espelho, fechou a porta da cozinha, trancou o portão e saiu à rua.

O sol quente foi apagando as lembranças da fábrica e trazendo devagarzinho a figura de Emília Emiliano. Caminhou apressado, agora escutando as vozes dos beatos que cruzavam as ruas de São Miguel todo domingo, orando e cantando. Jacinto desceu a rua da fábrica de química, onde às vezes entrava em algum bar sem cumprimentar ninguém, passagem ligeira — Um café — e, novamente, descia as ruas, as mãos dentro dos bolsos da calça, tranquilamente na direção do outro lado do bairro. Ali, Emília Emiliano estava lhe esperando todas as tardes de domingo.

Mais tarde, era assim que Emília Emiliano contava a história de sua vida para Jacinto quando eles atravessavam as ruas de São Miguel, já escurecendo:

— O rio Bananeiras engrossava as águas ou ia desvolumando até ficar um córrego fiozento correndo sem forças, minguado. Nesse ano, fortes chuvas toda tarde caíam, aquela preparação calada pela manhã, as nuvens baixando, a neblina só envolvendo a serra, depois do passar do meio-dia a chuva batia forte na terra e ia enlameando ainda mais as ruas, as pingueiras das casas aumentando. Olhava a chuva que parecia cair com mais vigor nas terras a perder de vistas do coronel Gercílio Batista. Tinha certeza de que até a natureza, de uma maneira ou de outra, também se comandava. Então ali eu via como se comandava a natureza com tanta terra ou como se comandava um homem lhe obrigando a trabalhar de sol a sol, como se estivesse lhe fazendo favores, assim como era meu pai, Zuza Emiliano meu pai, um homem sempre medroso; aquela soneira preguiçosa parecendo doentia; coronel Gercílio Batista, um bom homem, pois ia dar um pedaço de terra pra cultivar; assim, nesses termos, eu aparando água no oitão de casa, querendo me livrar dos caminhos escorregadios até a beira do rio Bananeiras. Vinham as festas de janeiro. Coronel Gercílio Batista mandava enfeitar com papel crepom a latada de sua casa e convidava os agregados. Pai, mãe, meus irmãos vestiam as melhores roupas e comentavam a mais não poder toda noite até chegar o começo das festas. Nessas noites o vento trazia de longe as músicas tocadas, os gritos de alguém bêbado, a cantoria. Só, dentro de casa, nunca me arrependendo de não ter ido. Meu pai: Menina boba. E saíam todos juntos, esquecidos do resto do ano. Mas eu não conseguia dormir e perambulava pelo quintal (aquele vazio de animais, algumas galinhas empoleiradas num pé-de-são-joão) ou ficava escutando o barulho vindo de longe, da festa, junto com o ronco de um porco ou de corujas com seus cantos agourentos. Aí olhava as estrelas que brilhavam no céu preto, que assustava pela sua imensidão, aquela distância entre a minha pequenez e a de todo mundo. Quando um cometa chispava o negrume, vinha um desejo: que o coronel Gercílio Batista morra como um porco.

Na caminhada, Emília respirou forte e parou. Soltou a mão de Jacinto olhando firme nos olhos dele.

— Está me ouvindo, Jacinto? — disse meigamente, abriu a bolsa e tirou de dentro folhas de papel amarrotadas, separou duas e dobrou-as. — Aqui, Jacinto, está cheio de coronel Gercílio.

Escurecia.

Voltaram a caminhar, ela continuou:

— Você diz que pouco conhece de mim? Muita coisa você já sabe. Onde trabalho, onde moro, meus tios. Você vai saber mais por meio dessas histórias que lhe conto. Você não tem idéia de toda a dedicação de Felipe lá na fábrica pelas histórias dele? Nesse mundo de hoje se precisa muito ouvir e falar às pessoas.

Na realidade Emília Emiliano queria era falar logo daquele documento, daquele papel amassado que se umedecia pelo suor de suas mãos.

— Pois passe pra Felipe, Eduardo, Mirandão, Arnaldo, Aristides, pra todo mundo lá na fábrica.

Jacinto suspendeu a respiração.

— Eles precisam ficar sabendo disso. Entendeu, Jacinto?

Nesse dia, no portão da casa de Emília Emiliano, Jacinto não se agarrou ao corpo dela e sentiu o coração dos dois baterem juntos e nem veio aquela vontade de se abraçarem ali mesmo, indiferentes às pessoas que passassem na rua em frente. Logo, silenciosamente, Jacinto se apressou em direção a sua casa, com o pensamento cheio de vozes de Emília Emiliano e com a mão fortemente amassando o documento que lhe enchia o bolso largo de sua calça azul.

Filhos do medo

O panfleto saiu do bolso de Jacinto com as pontas amassadas. Tremeu na mão dele. Fechou a porta do quarto a fim de não acordar alguém com a claridade da luz. O apito da fábrica de química tocou avisando nove horas. Desdo­brou vagarosamente as folhas, agora pareceu que o calor aumentava. Um pingo de suor caiu sobre as folhas abertas. Fora trovejou e começou a chover. O rumor da chuva foi apagando o barulho de tosse de João, vindo do quarto. Sen­tou na cama e sentiu o estômago doer, o braço doer, os olhos arderem, mas assim mesmo começou a ler com as letras enormes dançando como soltas sobre o papel.

— Não acredito — gritou.

A cama rangeu no quarto. Elvira acordara.

— O que foi, menino?

Jacinto se assustou.

— Uma barata, mãe.

Um carro passou devagar pela rua, novamente trovejou. Foi vindo os resmungos de João.

— Isso é lá hora de andar acordado? Amanhã…

A casa foi silenciando. O barulho da chuva na rua aumentou, um cachorro passou correndo pela calçada suja de barro, todo molhado e ganindo alto. Jacinto acertou o despertador, apagou a luz, a casa escureceu.

— Onde já se viu isso? Besteira — disse para si mesmo.

Pensou naquele panfleto atirado ali, próximo à cabeceira da cama. Levantou e acendeu a luz. Estava assustado. Trancou a porta do quarto. A chuva tinha diminuído. Riscou um fósforo e deixou que as chamas crescessem e queimassem todas as letras daquele papel. Antes que as chamas atingissem a mão, jogou o resto do papel no chão do quarto e o fogo foi consumindo lentamente. Depois, passou um sapato sobre as cinzas e soprou com força para debaixo da cama. Pensou em uma explicação para Elvira quando ela visse as cinzas. Destrancou a porta. Apagou a luz.

Deitou perturbado.

— Menina boba.

Em instantes foi esquecendo as cinzas. As lembranças de Emília Emiliano, as histórias dela foram chegando como se ela estivesse ali naquele quarto, com sua voz firme e entristecida: Era hora em que as mulheres do povoado iam buscar água no rio, enchendo com algazarras o fim da tarde. Era quando a água começava a esfriar do sol quente que quei­mava o dia inteiro. Anoitecia na curva do Bananeiras. Nessa hora eu vinha me balançando com um pote na cabeça, a água me pingando pelo vestido, ensopando as vestes gastas. Vindo para o mesmo lado, ele, coronel Gercílio Batista, saindo da rua e chamando os seus cachorros, três. Coronel Gercílio Batista montou no cavalo e desceu a ladeira pedregosa da rua, os animais desceram na frente correndo e latindo pela estrada cheia de pedras. Logo, os cachorros me acuaram junto à cerca de arame farpado; eu cheia de medo. Atrás: o trotar do cavalo de Gercílio Batista, os gritos dele chamando os animais. Aí, um cachorro segurou na minha saia comprida e puxou com força de ani­mal bruto, arrancando e rasgando pedaços de pano. Eu gritei, a água do pote derramando sobre o cachorro, eu gritei mais, o animal se afastou. Os outros animais rosnaram, impacientes, observavam a minha figura pequena, eles querendo atacar. Dobrando a curva do Bananeiras, Gercílio Batista assobiou chamando os animais, dois deles voltaram latindo. O outro me atacou, os dentes enganchados no vestido. Aí eu juntei todas as minhas forças, segurei o pote de barro no alto da cabeça, me bambeando com o puxão do cachorro. Decidida, joguei o pote com cora­gem na cabeça do animal, ele foi soltando devagar o pano do vestido, soltou, o seu pelo cinza tremeu, então tombou quieto. Quieto e morto. Meu nome: Emília Emiliano. Mas tanto poderia me chamar Maria Emiliano, Zuza Emiliano, que nada do mundo poderia me fazer escapar daquelas mãos que largaram as bridas do cavalo e, depois, seguraram no pêlo molhado e morto do cachorro e em mim. Então o coronel Gercílio Batista puxou o resto da minha saia e foi gritando moleca desgraçada, desgraçada, o grito dele penetrando em mim, aquelas mãos peludas me segurando nos cabelos e nos braços e em todo canto. Depois, subi a ladeira, corri em direção a minha casa. Escorregava nas pedras, a roupa em tiras. O pescoço, os bra­ços, tudo me doía e, como adivinhando, meu pai me esperava vestido naquele jeito dele, as calças remendadas, camisa aberta no peito. Parei e olhei na raiva dele. Então, ele veio ao meu encontro, agarrou em meus cabelos e me arrastou até o quarto. Sangrava. Ele segurou uma correia de couro cru que ficava sempre detrás da porta e desceu com força em minhas costas. Nem escutei os gritos de mãe, que correu assim você mata a menina, não faça assim. Duas pessoas odiei para sempre. O pai por ser fraco, medroso, que me bateu por temer ao coronel como se teme a Deus. E o coronel por… Eu tinha doze anos, Jacinto.