As delicadas relações entre os herdeiros de Prestes
Por Chico Otávio, na Revista d'O Globo
Na sala repleta de fotos do Velho e de foices e martelos estampados em objetos da antiga União Soviética, que fazem do ambiente um santuário comunista, Maria do Carmo Ribeiro Prestes expõe um ateísmo convicto: "Religião é apenas uma hipótese. Só hipótese".
Publicado 15/01/2012 15:14
Um olhar mais atento, porém, descobre entre matrioskas, cálices de vodca, pinturas russas e outras recordações, guardadas no apartamento da Gávea, uma pequena imagem de Nossa Senhora. Intrigado, o visitante cobra explicações. "Ah, ganhei e deixei aí", sorri a anfitriã.
Mãe de sete dos oito filhos de Luiz Carlos Prestes, com quem foi casada por 38 anos, Maria nunca deixou de zelar pelas memórias e pelas crenças do marido. Mas a vida difícil, marcada por perseguições, clandestinidade e exílio, foi incapaz de endurecer o seu discurso ou turvar o seu humor. A matriarca, aos 81 anos, preserva a mesma generosidade com que, na gélida Moscou dos anos 1970, abria as portas de casa aos exilados atraídos pelo aroma brasileiríssimo de uma improvável feijoada.
Na defesa do legado de Prestes, Maria criou um estilo. Não é solene, não prega a ortodoxia. Partiu dela a revelação das recordações mais íntimas do Cavaleiro da Esperança que vieram a público este mês, com a doação de cartas, documentos e fotografias familiares de Prestes ao Arquivo Nacional, na contramão da ideia de que o legendário líder comunista só tinha tempo para as lutas contra as oligarquias e o capitalismo.
Anita Leocádia tem jeito irascível e arredio
Para os apaixonados por História, sentar-se à poltrona de dona Maria e ouvi-la é um privilégio. Mas a poltrona da matriarca não é o único assento indispensável na busca dos melhores relatos sobre o líder comunista. Em Botafogo, outro apartamento guarda igualmente muitas preciosidades do baú de Prestes, mas ali a poltrona é para poucos. A primogênita Anita Leocádia, de 75 anos, filha da união do Velho com a comunista alemã Olga Benário, é rigorosa na seleção dos interlocutores. A "imprensa burguesa", por exemplo, não passa nem pela portaria do prédio. Esta, ela açoita com cartas desaforadas, sempre em desacordo com as reportagens publicadas. A publicação de uma das fotos cedidas ao Arquivo Nacional na capa da "Revista de História" deste mês, mostrando um relaxado Prestes de sunga numa praia do Ceará, foi fortemente criticada por Anita.
Este estilo, duro e inflexível, não tira dela a legitimidade de zelar pela memória do pai-herói. Sua importância é tão grande quanto a de Maria e seus filhos. Apesar do jeito irascível e arredio, além da vida recatada que faz os colegas de magistério a compararem a uma freira, não se conhece um gesto de Anita que tivesse cerceado a imprensa ou obstruído uma pesquisa acadêmica. Como ocorre agora, quando ela protesta contra a divulgação das fotos íntimas do pai, não foram poucos os momentos em que Anita se confrontou com o restante da família. Mas talvez seja este conflito, herdado das contradições do patriarca, que mantém acesa a chama do legado prestista.
Em 2004, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça resolveu agraciar Anita, perseguida e condenada a quatro anos de prisão pelo regime militar, com uma indenização de R$ 100 mil. Repetindo um ideal do pai, que em vida negara a promoção ao posto mais alto do Exército, onde começara tenente, ela pegou um ônibus, assim que o dinheiro entrou em sua conta, e desceu apressada na Praça da Cruz Vermelha, no Centro. O cheque quase lhe queimava as mãos quando doou toda a bolada à Fundação Ary Frauzino para Pesquisa e Controle do Câncer, ligada ao Instituto Nacional do Câncer (Inca). "Aprendi com o meu pai: é uma vergonha receber dinheiro do governo", justificou-se na ocasião.
Maria e Anita só uniram forças uma única vez
Na poltrona de Anita, não se senta nem o respeitado historiador Daniel Aarão Reis, ele também vítima da ditadura, empenhado há meses em escrever uma biografia de Prestes. Apesar da negativa, Daniel demonstra compreensão.
"O que mais esperar de uma mulher que nasceu num campo de concentração, não conheceu a mãe, foi criada pela avó no México, esteve duas vezes exilada na antiga URSS e que, quando conviveu com o pai pela segunda vez na vida, descobriu que Prestes já tinha outra família, com três filhos biológicos e dois adotivos?", indaga ele, fazendo referência aos dois filhos que Maria teve de um relacionamento anterior a Prestes.
Maria e Anita, pesquisou Daniel, só uniram forças uma única vez. Foi em agosto de 1961, com Prestes na clandestinidade após a renúncia de Jânio Quadros. A polícia de Carlos Lacerda bateu à porta da casa onde a família morava (Maria, seis filhos, Anita e uma das irmãs de Prestes, Lígia) na Rua 19 de Fevereiro, em Botafogo. As duas, juntas, com dedo em riste, impediram que os soldados entrassem. Mas foi só isso. Até no velório do Velho, em 1990, as duas facções da família ficaram em lados opostos da urna funerária.
Apesar das brigas, que se intensificaram após a morte de Prestes, a viúva e a primogênita se complementam. São os dois lados do legado. Face larga, pele morena, sorriso farto, Maria, a ex-segurança que se apaixonou pelo líder enquanto o protegia, é o lado mais vibrante e humanizado do patriarca. Rosto grave, sem pintura, acentuado por óculos de lentes grossas, e corpo delgado como o da a mãe europeia, Anita, a historiadora cujo campo de estudos se esgota na própria trajetória dos pais, representa o ideário. É a guardiã da escalada de lutas, da visão de mundo.
Desde o começo, a relação de ambas nunca foi amistosa. Quando Anita voltou ao Brasil em 1958 (tinha estado em 1945, mas ficou apenas dois anos), não sabia que Prestes tinha uma segunda família desde 1952. O pai, que experimentava um raro momento de legalidade num país acossado pela Guerra Fria, mantinha a mulher e cinco filhos numa chácara em Jacarepaguá, enquanto se encontrava com Anita, então com 22 anos, no apartamento das irmãs, em Copacabana.
"Passadas algumas semanas, Prestes resolveu apresentá-la. Foi um choque para aquela jovem que passara anos longe, alimentando a áurea da mãe mártir e do pai-herói", conta Daniel. "Ela achava que Prestes seria só dela, mas descobriu que teria de partilhá-lo com a madrasta e uma filharada".
Também não foi fácil para Maria dividi-lo com a enteada. Aos poucos, Prestes foi passando mais tempo com Anita, dedicando-se menos à casa de Jacarepaguá. Um episódio insólito, porém, mudaria a situação: o líder comunista levou um tombo doméstico que afetou a coluna.
Percebendo o seu sofrimento, uma das irmãs, Lúcia, argumentou: "Esse homem tem uma mulher. Quem tem de cuidar é ela." Então, Maria foi levada a Copacabana. Ironicamente, não foi a Coluna Prestes, mas a coluna de Prestes, que acabaria salvando o seu casamento", diz Daniel.
Até politicamente, a união com Prestes rendeu problemas. Mesmo as credenciais de militante, filha de um aguerrido comunista do Nordeste, não livraram Maria de enfrentar o preconceito interno. Primeiro: ela era bem mais jovem (tinha 20 anos, e Prestes, 54). Segundo: era uma mulher do povo, sem formação, enquanto os companheiros do Partidão queriam o líder casado com uma comunista teórica.
"Como havia uma campanha forte de que eram contra a família, os comunistas em geral portavam-se com extremo moralismo. Tinham de ter um comportamento exemplar para enfrentar os críticos", afirma o sociólogo Marcelo Ridenti, especialista na história das esquerdas. — Nos cursos oferecidos pela União Soviética, os rapazes tinham de dançar com as moças mantendo uma distância de 15 centímetros.
Por questões de segurança, Prestes se fazia passar por tio dos filhos
O pernambucano Diógenes Arruda era, no comitê central do PCB, o dirigente mais hostil a Maria, chegando a destratá-la. Coube a outro peso-pesado do Partidão, Giocondo Dias, esfriar o clima adverso. Ele disse que Prestes tinha todo o direito de escolher uma parceira sem intromissão do partido.
Depois do episódio da Rua 19 de Fevereiro, quando Maria e Anita enfrentaram juntas a polícia, as duas jamais voltaram a dividir o mesmo teto. Por decisão do PCB, Prestes foi morar com a família em Vila Mariana, São Paulo, mas Anita ficou com a tia, Lígia, no Rio. Mais tarde, com o agravamento do regime militar e o início da Guerra Suja, ambas seguiram para o exílio em Moscou. Mas, lá, em tetos distintos.
A relação de Maria com a ditadura é curiosa. Paradoxalmente, foi o exílio forçado de dez anos em Moscou (1970-1979) que lhe proporcionou os melhores anos de convívio com o marido, ainda mais quando a temperatura baixava a 30 graus negativos e nem o Cavaleiro da Esperança enfrentava as ruas glaciais da capital russa.
"Passei o primeiro ano sozinha, com os garotos e as meninas. Prestes só chegou no ano seguinte. Foi ali que meus filhos souberam quem era o seu pai", diz Maria.
Até então, por questões de segurança, Prestes se fazia passar por tio dos meninos.
Militar de formação, Prestes cumpria em casa uma rotina rigorosa, acordando às 5h30m, e exigia que os filhos evitassem circular em casa de pijama ou camisola, porque as visitas apareciam a qualquer hora.
"Certa noite, quando todos viam TV, minha mãe se levantou e a desligou. Depois, virou-se para meu pai, que estava surpreso, e disse: 'Veja como você está vestido.'", recorda-se Luiz Carlos Prestes Filho, que impressiona pela semelhança física com o pai. "O Velho, único de pijama na casa, fora flagrado. Desde então, todos os filhos foram liberados de usar as roupas de dormir."
A temporada em Moscou também foi pródiga para Anita. Enquanto concluía os estudos, virou o braço direito do pai na luta interna que ele travava no Partidão. Os comunistas, pouco antes, dividiram-se entre os partidários da luta armada e os defensores de uma aliança estratégica com o MDB.
"Prestes rejeita as duas opções e fica isolado. Queria construir uma tendência de esquerda, mas não pela luta armada. Apoiou-se muito em Anita. Não deixou de amar Maria, mas tinha paixão pela filha" explica Daniel.
O isolamento levou pai e filha a uma opção controvertida para não perder o controle: alçar ao cargo de secretário-geral o mais jovem membro do comitê central, o obscuro dirigente José Sales. A tentativa terminou em escândalo. Para decepção dos Prestes, Sales foi acusado de desviar os recursos partidários e, supostamente, envolver-se com o tráfico de drogas. A luta interna do Velho estava perdida. Três anos depois de voltar ao Brasil, favorecido pela anistia de 1979, trocaria o PCB pelo PDT, de Leonel Brizola, passando a ser muito mais um símbolo do que um dirigente operacional.
Um ano antes de morrer, o líder comunista assistiu a Anita defender a tese de doutorado sobre a Coluna Prestes na UFF. Embora os colegas a considerassem uma intelectual de mãos cheias, a produção da historiadora, desde então, é vista com alguma reserva. Muitos a acusam de querer monopolizar o legado de Prestes ou de celebrar demais a sua memória, destacando apenas as virtudes.
Mas a disposição de Anita é inquebrantável. Nunca teve problema de assumir publicamente as posições mais polêmicas. Recentemente, no site do seu Instituto Luiz Carlos Prestes, reproduziu o artigo de Miguel Urbano Rodrigues, no qual o escritor português faz um desagravo a Kadafi: "Qualquer paralelo entre ele e Allende seria descabido. Mas tal como o presidente da Unidade Popular chilena, Kadafi, coerente com o compromisso assumido, morreu combatendo. Com coragem e dignidade."
Para Anita, Prestes será eternamente "a expressão máxima da luta revolucionária pelo socialismo e o comunismo". Para Maria, além disso, o pai de seus filhos, o chefe da casa.
Publicado na Revista d'O Globo, de 15/01/2012