70 anos: O dia em que o cearense vaiou o sol

Há 70 anos, frequentadores da Praça do Ferreira se aglomeravam para vaiar o sol que teimava em aparecer. O episódio daquele 30 de janeiro de 1942 virou um marco da irreverência cearense. 

Era janeiro de 1942. Fortaleza, então com pouco mais de 180 mil habitantes, nem sonhava com os arranha-céus que tomariam seu espaço. Casas de muros baixos e praças arborizadas do Centro da cidade assistiam aos rapazes de paletó flertar as moçoilas de vestidos alinhados. Nos jornais, notícias da Segunda Guerra Mundial ocupavam boa parte das páginas dos folhetins. O que acontecia noutras terras chegava também através do rádio e deixava os moradores sob tensão.

Pela Praça do Ferreira (que já foi Feira-Nova, Pedro II, da Municipalidade e é do Ferreira desde 1871), o assunto da guerra se dividia com o futebol que era anunciado em placas espalhadas pelos quatro cantos, indicando o match da semana. Por ali, os bebuns capengos se esbarravam com os intelectuais e tropeçavam nos saltos finos das moças da sociedade que se esquivavam da ralé circulante. Na praça os bancos ocupados por toda a “estirpe” de gente (intelectuais, políticos, católicos, comunistas, etc), uma Fortaleza inteira se refletia. Foi exatamente nesse “coração da cidade” que se deu o causo que hoje completa 70 anos.

Uns contam que o tempo apenas estava bonito para chover. Outros dão conta que já chovia forte há dois dias, entrando no terceiro. O Ceará, vindo de uma seca braba, clamava para que o sol desse uma trégua por mais uns dias, mas ele, naquele 30 de janeiro de 1942, teimou em varar as grossas nuvens e apareceu avermelhado no céu.

Passando pelas proximidades da Praça do Ferreira em direção ao setor de redação do O POVO, um repórter “esgueirando-se pelas calçadas molhadas” viu um grupo numeroso de pessoas aglomerado por ali, reparando “o esforço desesperado do sol para aparecer” e registrou os seguintes fatos na edição vespertina daquele mesmo dia. “Olhando para o alto e apontando, começaram uma demonstração estrondosa, vaiando o astro vencido e apagado, naquele momento, num grito uníssono de várias bôcas. Mas afinal o velho Rei das alturas venceu, botando todo corpo vermelho para fora das nuvens e dispersando os vaiadores”.

À época, como tudo o que acontecia na Praça do Ferreira, o ato inesperado foi sabido por boa parte da pequena população fortalezense, mas logo o deu por esquecido. Hoje, o episódio é visto como uma prova que a verve cômica do cearense vem de muito antes de Chico Anysio, Renato Aragão, Tom Cavalcante, Falcão ou Rossicléa. “A molecagem já está bem residente nesta vaia, como já estava na Padaria Espiritual, como estava quando chamavam as moças que namoravam soldados americanos, na época da Segunda Guerra, de garota Coca-Cola. O teatro do Carlos Câmara já traz isso, a música de Ramos Côtoco no início do século 20 também, é algo que vai sendo construído”, aposta o professor e pesquisador Gilmar de Carvalho, que, até uma aluna mostrar-lhe a xérox do O POVO daquele dia, acreditava no fato apenas como uma lenda urbana.

Autor da peça O dia em que vaiaram o sol na Praça do Ferreira, escrita em 1983, Gilmar aponta, no entanto, que a visibilidade hoje dada à vaia é coisa recente. “Em 1976, quando fiz uma pesquisa sobre a molecagem cearense, essa reverência à vaia não era tão forte. Ela foi sendo apropriada pelos humoristas cearenses e o dia em que o sol foi vaiado se torna um momento oficial dessa irreverência do cearense. Acho que de uns 15 anos para cá que tem isso mais forte”.

Ceará fuleiro

O porquê de um episódio nada mais que curioso ter entrado para a história de Fortaleza e ter feito de uma simples vaia um “patrimônio imaterial” do cearense, ninguém define ao certo. Alguns pesquisadores e memorialistas acreditam que só o fato dele ter acontecido onde aconteceu, já é meio caminho para ganhar a visibilidade que tem hoje. “Aqui o pessoal tem essa mania de vaiar tudo e a Praça do Ferreira sempre foi o ponto principal da canalhice, do Ceará moleque”, pontua o pesquisador Miguel Ângelo (Nirez). “Esses apupos eram naturais a esse pessoal que sentava ali na Praça do Ferreira. O cearense é realmente um povo dado a essa forma de vaiar. Padre Quinderé já dizia que Fortaleza era terra de muro baixo: tudo o que acontecia, era muito divulgado, muito mexericado”, reforça o memorialista Zanilo Almada.

A vaia dada ao sol por “alegres circunstantes”, como define o repórter desconhecido do O POVO (a matéria não está assinada), oficializou o dia 30 de janeiro de 1942 como o marco da irreverência do povo cearense. Característica que para alguns cria um estereótipo nada engraçado. “Eu vejo mais como uma espécie de extravasamento do recalque da vida miserável que leva. O povo não leva nada a sério é porque ele também não é levado a sério”, opina o pesquisador Christiano Câmara.

Para outro tanto, o humor sem estereótipos tem lá a sua graça, sim. O sério professor Gilmar é um dos que se rende à ideia. “Através da irreverência, a gente consegue reagir bem às adversidades. Acho que não prejudica a nossa imagem porque fica sempre como uma coisa leve, o cearense não vira uma usina de humor 24 horas. Funciona muito como um tempero que vai tornar a vida mais interessante. Conseguimos ser pessoas vistas como trabalhadoras e, ao mesmo tempo, que vaiam até o sol”.

Entrevista: "Nossa vaia vem da alma"

Jornalista por diploma, humorista por vocação, Tarcísio Matos é uma das expressões da irreverência cearense. Em entrevista, ele conversa sobre os 70 anos da vaia ao sol e debate um assunto seríssimo: o humor.

De cara limpa, em letras e versos e sempre nos bastidores. Assim é o humor que o jornalista diplomado Tarcísio Matos, 54, faz pelo Ceará deste os tempos de faculdade. Dono de um faro apurado para o besteirol, nenhum fato mais exótico – para não dizer “marmotoso” – passa ileso aos seus olhos e ouvidos. E as histórias com que se esbarra no dia a dia acabam indo parar nas páginas da coluna Aos Vivos, publicada aos sábados neste caderno, ou mesmo em livros bem humorados. A maior parte delas, no entanto, acaba virando música, aquelas que o brega-star Falcão transforma em sucesso há mais de 30 anos. Em uma conversa leve e descontraída, Tarcísio Matos falou ao O POVO sobre o dia em que a Praça do Ferreira viu um bando de cearense vaiar o sol e a vaia se imortalizou no imaginário popular como a maior maracá da molecagem do povo daqui. Conversou ainda sobre a seriedade do humor e a mania de fazer graça do cearense.

Quando você ouviu falar dessa história da vaia ao sol pela primeira vez?

Ah, faz muito tempo. Quando eu nasci (e lá se vão quase 55 anos), meu pai já falava dessa vaia, mas não com tanta intensidade quanto hoje.

Por que acha que ela ficou tão famosa?

A vaia é uma expressão de inconformismo, você pode pegar nos compêndios de sociologia, de antropologia. É uma manifestação que não se deve desconsiderar em hipótese alguma. Seja para exaltação ou para esse inconformismo diante do que é negativo, ela é a expressão do que está dentro de cada um de nós e a vaia enquanto recursos do Ceará moleque, ela tem sido melhor trabalhada de um tempo pra cá, quando o Ceará se consagra como um celeiro de humoristas para o Brasil. Houve-se de pegar essa vaia para se colocar no centro de discussões, de apreciações do Ceará moleque, juntamente com o cajueiro botador, com o Manezim do Bispo, a Castorina que fazia apelido. Então, quando a gente começa a ter a compreensão de que Renato Aragão é personagem desse Ceará moleque, Chico Anyzio, Falcão, Tom Cavalcante… Quando esse pessoal todo se consagra, esses episódios diferenciados que trazem consigo alguma identificação de humor em si, a vaia veio a reboque como expressão dessa molecagem. Quando completou 10 anos, talvez não tenha sido tão comemorada, 20, 30, mas dos 50 anos pra cá, muito mais. É quando ocorre de transformar toda essa efervescência em negócio. Esse momento propicia que você enxergue naquela vaia uma expressão do Ceará moleque.

O que você configura como uma molecagem tipicamente cearense?

Uma das maiores expressões é essa vaia.

Mais que consagrar um bode ou fazer chacota de alguém?

Mais. As pessoas se juntarem numa praça e lascarem uma vaia no sol porque não choveu três dias, pra mim não existe nada igual.

Engraçado que a vaia da gente é diferenciada. Não é aquela uuuu, é aquela ieeei… De onde é que vem isso?

Da mundiça, da molecagem. Tem uma parte que é fuleragem e eu acho que isso é espiritual. Acho que Deus resolveu colocar num canto de planeta chamado Ceará um bocado de gente que veio doutras paragens cósmicas e disse: “Eu vou colocar essa fuleragem toda junta”. Porque a nossa vaia é diferente. Uma coisa é essa vaia elegante do europeu. Uma vaia contra um [Silvio] Berluconi [ex-primeiro-ministro da Itália] é assim uhhh, muito técnica, palaciana. A nossa vaia vem da alma e vem acompanhada, inclusive, de alguns misancenes. A gente faz uma espécie de concha que é pra dar mais acústica e faz assim ó: ieeeeeeeeeei! [grita, se curvando levemente e fazendo a concha da acústica com a mão para depois cair na gargalhada]. Essa vaia não traz uma maldade dentro dela, não é para diminuir, ela é uma expressão de uma molecagem que é típica. O cara vaia por nada. Eu fui lançar meu livro na Bienal e não tinha ninguém, e quem foi apresentar foi o [jornalista] Moacir Maia. Quando ele viu que não tinha ninguém, pegou o microfone e disse: “Pessoal, já que o livro é Vaiando o Sol, vamos dar uma salva de vaia para ele”. Esse Centro de Convenções todinho uníssono: “Ieeeeeei”. Vendi 200 livros depois disso.

Você falou que Deus colocou os fuleragens todos juntos aqui, mas o humor é realmente uma coisa só nossa?

Não, ave Maria! A Paraíba tem demais, o Piauí tem, São Paulo, Rio, são formas diferentes de fazer humor.

O que diferencia o humor do cearense?

Ele é minimalista e eu sou um representante desse minimalismo do humor. Essa coisa do bate-pronto, sem complexidade, sem leituras psicológicas que tornam difícil a compreensão da graça.

É a piada besta?

Você fechou a história: é o besteirol. O Jair Morais acabou de ligar aqui e disse: “Tarcisio, tô te ligando para contar a história de dois personagens daqui do Vila União. É um casal: o Raimundo Cu de Rede e a Cristina Catarro”. Perguntei: por que esse nome? Ele: “Porque o fi duma égua vive deitado e a catarro porque fuma demais e vive tossindo”. [cai na gargalhada]. Então é essa besteira sem elucubrações teóricas, é o pei-bufo.

Ainda falam muito, principalmente, do humor que está no palco, que é vendido para turista, aquele humor mais escrachado, do palavrão…

Aí nós temos que fazer uma diferenciação. Existe aquele humor moleque do Ceará, do Quintino Cunha, Paula Ney, que faziam humor sem a intenção de ganhar dinheiro com isso, só pela graça, pela espiritualidade natural do cearense. Aí vai o palavrão, ou não. Apesar de ele ser besteirol, mas ele tem inteligência. O que diferencia o humor de hoje que são agressivos, de baixo calão? É que muita gente se arvorando a ser humorista, acha que contar uma piada é ser humorista e não é.

Tem uma diferença entre humor encontrado nas esquinas, no Vila União, nas mesas de bar do humor que a gente vê nos palcos?

Esse é o humor para o turista ver: teatralizado, pasteurizado, é uma expressão do humor que se faz com a intenção de ganhar dividendos, de profissionalizá-lo. Acho que falta produção, falta competência para ser moleque a muitos desses humoristas que estão aí.

O cearense consegue rir do nosso humor?

Sim, a gente ri até do nosso povo, até na hora da morte. A nossa condição de adversidade é tão grande que uma das formas de expressar isso é no humor. Ao invés de entrar naquela depressão, eu vou pelo menos mangar de mim. Não vejo isso como uma coisa ruim, negativa. É uma forma de recalque, mas não aquela da psicologia que entulha o homem de dores internas. É um recalque, mas eu vou colocar pra fora pra melhor passar. Aí se juntam uns cinco ou seis pra fazer a esculhambação e, no outro dia, tá tudo feliz.

Até onde é bom para o Ceará sempre ser visto como o engraçado?

Fazer alguém rir é muito mais difícil que fazer alguém chorar. O humor é também uma expressão da inteligência. Essa espiritualidade num é pra qualquer um não e isso já diferencia. Você fazer rir, é uma graça, uma bênção. Num to dizendo que isso nos faz mais feliz ou menos feliz, mas pelo menos nos dá a condição de sofrer rindo. 

Fonte: O Povo