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Samuel Sergio Salinas: A justiça, o Pinheirinho e Marx

Em maio de 1842, Karl Marx, com 24 anos, aceitou colaborar no jornal fundado na Colônia, pertencente à burguesia renana. Colônia era a mais industrializada e rica província do Império Alemão. O jornal, a Gazeta Renana, empenhava-se pela unificação das numerosas províncias do Império, abolição das alfândegas regionais que entorpeciam o comércio, pela liberdade de expressão, regime parlamentar e uma constituição liberal.

Por Samuel Sergio Salinas*

Para Marx foi a primeira tentativa de exercer um trabalho cotidiano permanente, pois a partir de outubro de 1842 assumiu a chefia de redação do jornal até o momento em que este foi condenado a desaparecer pelo governo imperial, em abril de 1843.

A atividade jornalística de Marx na Gazeta Renana (Rheinisch Zeitung) começou na edição de 5 de maio de 1842 com um artigo sobre a liberdade de expressão, assunto de debates na Dieta renana sobre a liberdade de imprensa. O acolhimento foi muito favorável e repercutiu na Alemanha a ponto de outros jornais publicarem excertos desse e de outros artigos sobre o mesmo tema, também publicados na Gazeta Renana.

No exercício da editoria do jornal, Marx enfrentou outras questões além da luta incessante contra a censura, a ponto de um desses censores ter advertido que o título de Dante, a Divina Comédia, devia ser evitado, pois não é condizente ao tema tratar a religião como uma comédia.

Episódio que levou Marx a escrever uma série de artigos (de 25 de outubro a 6 de novembro de 1842) ocorreu quando a Dieta Renana votou uma lei criminalizando como roubo a coleta de galhos caídos de árvores dos bosques pertencentes aos grandes proprietários, pelos camponeses pobres. Marx, esgrimindo com eficácia a interpretação jurídica dos fatos (comparecera a cursos de Direito em Bonn e Berlim) levanta-se contra a promulgação da lei.

Demonstrou que a coleta de ramos pelos camponeses era um vetusto direito consuetudinário, um costume muito antigo praticado e obedecido em toda a Europa, um direito de uso socialmente acolhido. Marx Insurge-se contra esta abrupta decisão e escreve: “Nós, gente pouco prática, reclamamos, para o bando pobre e despossuído política e socialmente, o que estes lacaios sábios e dóceis, estes pretensos historiadores, apresentaram como a verdadeira pedra filosofal, a fim de transformar toda ação impura em puro ouro jurídico.

Nós reivindicamos para os pobres o direito costumeiro que não seja apenas local, mas um direito dos pobres em todos os países.” A propriedade absoluta do solo rural era o objetivo da lei, uma dura disputa entre classes sociais evanescentes ,que cediam poder ao capitalismo em sua caminhada para assegurar o domínio do solo agrário e de todos e tudo que vicejasse na terra e sobre ela, do inferno aos céus.

O dilema decorre do fato de que a integração dos bosques no circuito de valorização mercantil torna o seu valor de uso e o seu valor de troca indissociáveis. O capitalismo absorvia o espaço rural expulsando o derradeiro exercício pelos camponeses de uma das suas duras conquistas no enfrentamento com os senhores feudais. Marx apontava o conúbio entre o Estado e o capital, ou seja, o capital enquanto Estado na apropriação do que ainda subsistia dessas conquistas sociais. A propriedade se consolidava como o permanente exercício da violência legitimada pela força do Estado.

O caso Pinheirinho, em São José dos Campos, SP, ocorreu quando a polícia paulista, em São José dos Campos, SP desalojou, pela força, usando tratores, gás lacrimogêneo e os indefectíveis cassetetes, crianças, mulheres, idosos, as pessoas que habitavam, ordenadamente, uma área pertencente a uma empresa sob regime falimentar. Os tratores passaram sobre os casas construídas de alvenaria numa devastação que nos recorda alguns episódios da última guerra mundial, a lembrar a mesma atitude nazista em relação aos povoados do Leste europeu.

A ação, sob o pretexto de uma decisão judicial que, por sua vez, aferrou-se ao literalismo da lei, sem buscar a forma mais adequada de solucionar uma dolorosa situação social, foi desencadeada após metódica intervenção de espiões, policiais infiltrados no Pinheirinho, como uma ação de guerra “inteligente”. O Poder Executivo Municipal, de maneira intransigente, não atuou com a devida antecedência para evitar o confronto.

A população residente no local, ocupada há tempo, nela criou um bairro conhecido pela população de São José como Pinheirinho. Lá muitos iniciaram as suas vidas de sem teto (como se isto constituísse um crime), constituindo famílias, iniciando a educação dos filhos, convictos de que eram cidadãos e munícipes.

Foram todos expulsos num ato que nunca conseguirá convencer a todos, principalmente as crianças, de que tudo foi feito em nome da Justiça. Imagino a perplexidade dos pais ao tentar explicar aos filhos que essa foi uma decisão do Poder Judiciário, impotente e incapaz de compartilhar o sofrimento do outro, antes de, pelo menos, criar uma rede de proteção que não destroçasse a convicção de que somos um povo cordial.

Mas a questão não deixa de girar sobre um tema recorrente na filosofia social sobre o que é a propriedade.

*Samuel Sergio Salinas é procurador de Justiça aposentado do Estado de São Paulo, é sociólogo, escritor e jornalista, autor de diversos livros. Foi um dos fundadores do Ministério Público Democrático do Estado de São Paulo.