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Venezuela e América Latina: a importância do 4 de fevereiro

Há 20 anos, em 4 de Fevereiro de 1992, uma corrente militar-revolucionária venezuelana, liderada pelo então tenente-coronel Hugo Chávez, organizou um levante destinado a substituir o governo impopular e neoliberal de Carlos Andrés Perez e convocar uma Assembléia Nacional Constituinte para que o povo, por meio de ampla participação popular, determinasse novos rumos para a Venezuela.

Por Beto Almeida*

A convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte era o ponto fundamental do Projeto Nacional Simon Bolívar, programa de luta deste movimento militar, que contava com apoio civil. Com o fracasso do levante militar – apesar do apoio de 80 por cento que a insurreição registrava em todas as pesquisas de opinião – o movimento tomou outras formas, outros caminhos, outras táticas. Mas não perdeu o rumo histórico.

Com o fracasso militar da iniciativa, mas não político, Chávez e seus companheiros seriam levados a anos de prisão, mas, ali, além de devorar vários livros fundamentais para qualquer dirigente político que pretenda legitimamente mudar a história, transformar-se-ia no mais popular cidadão venezuelano. Se a via militar não fora bem sucedida, em 2 de Fevereiro de 1999, apenas 7 anos depois, após ter sido eleito por esmagadora maioria dos eleitores venezuelanos, o já presidente Hugo Chávez convoca a Assembléia Nacional Constituinte, que, entre outros dispositivos, decreta, com aprovação de um referendum democrático, a República Bolivariana da Venezuela.

A insurreição de 4 de Fevereiro de 1992 estava, portanto, legitimada, 7 anos depois, pelo voto direto dos venezuelanos, e seguia o rumo traçado no Projeto Nacional Simon Bolívar, escrevendo uma das mais avançadas constituições da América Latina. Ademais, submetida a referendo, o que jamais foi informado honestamente aos povos da América Latina pela mídia comercial.

Consciência bolivariana

Vale recuperar esta linha da história porque o imperialismo e a oligarquia venezuelana desataram uma enorme campanha de desinformação sobre a realidade política transformadora em curso na Venezuela desde então, insinuando que tudo não passara de tentativa de golpe de estado ditatorial.

Muito diferente disto, o movimento de 4 de fevereiro era a reação da consciência da pátria bolivariana em gestação, manifesta na legítima fúria popular do Caracazzo, em 1989, em reação ao governo de Carlos Andrés Peres que implantou pacote de medidas neoliberais, multiplicando abruptamente o preço dos alimentos, da gasolina, e promovendo sanguinária repressão ao povo que, conforme estimativas de Hugo Chávez em entrevista a este repórter, teria causado a morte de mais de 3 mil pessoas, cujos corpos foram enterrados não se sabe onde.

O 4 de fevereiro era a nova reação da indignação popular contra o neoliberalismo corrupto, que entregava a preços negativos o petróleo venezuelano às petroleiras dos EUA e submetia a população a índices alarmantes de miséria, exploração, analfabetismo, doenças de toda sorte, desemprego, incultura e violência social generalizada.

“Por ahora”

O povo da Venezuela compreendeu em profundidade o alcance contido na insurreição, apesar de ter fracassado do ponto de vista militar, mas que triunfara do ponto de vista político. Da via armada, passa para a via eleitoral com o apoio construído a partir da percepção inteligente das grandes massas empobrecidas do país.

O 4 de fevereiro tinha alcance histórico, não era uma quartelada apenas. Para render-se e preservar a vida dos insurretos, Hugo Chávez exigiu como condição poder dirigir-se ao povo por rádio e televisão. Foram 47 segundos que mudaram a história da Venezuela.

No rosto negro-indígena de Hugo Chávez, o povo mestiço da Venezuela compreendeu imediatamente que era um dos seus, falando sua língua, sentindo a sua mesma indignação contra o regime opressivo, embora revestido de formalidade democrática. As enormes filas que visitavam Hugo Chávez e seus companheiros na prisão eram o indicativo que uma nova era começara na pátria de Miranda e Bolívar.

Uma parte importante da esquerda não teve a mesma compreensão inteligente manifestada pelas massas empobrecidas da Venezuela em torno daquele movimento e daquele momento histórico. Certa vez, convidado a falar sobre a experiência da Telesur na Universidade de Madri, ouvi de um dirigente de partido de esquerda espanhol que somente após o golpe midiático de abril de 2002 contra Chávez, a sua agremiação tinha concluído, finalmente, que o dirigente venezuelano era realmente um homem progressista e que havia um processo de mudanças no país latino-americano.

Não resisti e registrei que aquilo que muitos partidos de esquerda demoraram 10 anos para entender – que o movimento de Hugo Chávez é um processo revolucionário – as massas venezuelanas compreenderam em apenas 47 segundos naquele discurso em que o dirigente consciente pronuncia a celebrada expressão “Por ahora” (por enquanto, em português), e organiza a rendição que na prática era um recuo tático para a retomada da luta com outros métodos, mas com o mesmo objetivo.

Movimento de Vargas no Brasil

Afinal, não surpreende que dirigentes comunistas tenham dificuldade na identificação e compreensão de processos revolucionários que surgem fora do leito tradicional dos partidos de esquerda. Sobretudo quando são iniciativas transformadoras dirigidas por correntes militares progressistas.

Afinal, os comunistas também não entenderam a Revolução de 30, quando inspirado e impulsionado pelo Tenentismo, Vargas arma o povo e vem com ele armado até o Rio de Janeiro, pondo fim ao regime oligárquico de Washington Luiz e iniciando uma era de transformações.

A relação de forças dos anos 30, a existência do nazi-fascismo, a insuficiência organizativa dos sindicatos dos trabalhadores cobraram prazos e táticas completamente sui-generis para a construção de uma nova maioria. Mas, as transformações sociais iniciadas então foram notáveis. A industrialização, o direito de voto à mulher, a fundação da educação pública brasileira, a nacionalização do subsolo e a criação do Conselho Nacional do Petróleo como bases para o surgimento da Petrobras, a criação da Cia Vale do Rio Doce, da Cia Siderúrgica de Volta Redonda, os direitos trabalhistas, o salário mínimo, a Rádio Nacional, o Instituto Nacional do Cinema Educativo, foram algumas das conquistas daquela Era Vargas, que Fernando Henrique Cardoso, mais tarde, colocou como o alvo fundamental a demolir.

Não será inútil dimensionar que aqueles que contribuíram para separar Prestes de Vargas em 1930 podem ter atrasado enormemente o curso da história no Brasil. Vale registrar que o bravo Cavaleiro da Esperança, depois de ter dado entrevista pedindo a renúncia de Vargas em 24 de agosto de 1954, no jornal Tribuna Popular, recolhido pelos dirigentes do PCB ante a fúria popular desatada pela morte do presidente, termina seus dias como Presidente de Honra do PDT de Leonel Brizola, um dos principais herdeiros do varguismo.

Hugo Chávez ao organizar o levante cívico-militar de 4 de fevereiro também esperava contar com o apoio de correntes e partidos da esquerda, mas foi por elas abandonado na hora H, o que também contribuiu para o fracasso da operação, do ponto de vista exclusivamente militar.

Comunistas contra Perón

Os comunistas também não compreenderam o movimento de Perón, na Argentina, que transformou aquele país em um dos mais prósperos do mundo, com estatização dos principais setores da economia, a eliminação do analfabetismo, o desenvolvimento de indústria e de tecnologia próprias em automóveis, aviões, ferrovias, energia nuclear etc. Tudo isto, com a oposição dos comunistas que uniram-se aos segmentos oligárquicos e imperiais para desatar uma campanha que taxava Perón de nazista. Parte central da popularidade e dos êxitos de Nestor e Cristina Kirchner hoje, é porque representam a continuidade histórica possível do peronismo popular na atualidade.

O movimento comunista também chamava de gorila o general Juan Velasco Alvarado que dirigia a Revolução Inca , no Peru, nacionalizando o petróleo, os minérios, iniciando a reforma agrária, a alfabetização em massa, retirando os meios de comunicação das mãos da oligarquia e entregando-os aos trabalhadores, com o que transformou o país andino em uma referência de luta antiimperialista naquela época. Hoje, em boa medida, Humalla Ollanta, representa a retomada de muitos dos ideais de Alvarado e sua equipe, que também inspiraram a Hugo Chávez, como já declarou o venezuelano.

Superados estes desencontros que no passado separaram as forças populares, o importante hoje, no momento em que a pauta da integração ganhou, finalmente, um patamar de consolidação na Comunidade dos Estados de Latino-América e Caribe (Celac), é organizar para que estes episódios sejam compreendidos em toda a sua profundidade pelos povos do sul. Isto porque movimentos como o 4 de Fevereiro de 1992 estão indissoluvelmente ligados ao 2 de fevereiro de 1999 quando é convocada a Assembléia Constituinte da Venezuela que viria a escrever a Constituição Bolivariana. E o Partido Comunista da Venezuela já não hostiliza Chávez, tem postura correta, ativa e construtiva como parte do processo transformador bolivariano. Nas fileiras de esquerda já se discute com mais dialética e menos preconceito o papel das correntes militares, na luta contra o imperialismo e a oligarquia em vários países.

Tanto a Constituição Bolivariana, como a liberação da Venezuela do analfabetismo, como a renacionalização da PDVSA, como o nascimento da Petrosul, do Banco do Sul, da Unasul, da Telesur, da Alba, estão umbilicalmente vinculados à luta dos povos da América Latina e Caribe, das quais, o 4 de fevereiro foi uma alavanca, uma faísca, um estímulo, e assim deve ser valorizado historicamente no momento em que completa seus 20 anos.

Assim como o levante popular de 2001 na Argentina, a Guerra do Gás na Bolívia, a resistência às privatizações na Uruguai, a eleição de Lula com o apoio das forças populares no Brasil, a retomada gradual do curso sandinista na Nicarágua, a Revolução Cidadã no Equador, todos estes movimentos tiveram no 4 de fevereiro de 1992 um forte impulso, um brado de que era chegada a hora de organizar em nova dimensão a rebeldia dos Caracazzos, enterrar o neoliberalismo, todas as ALCA e vencer as democracias fraudulentas suplantando-as pelas democracias verdadeiramente participativas.

Assim como também é chegada a hora, agora, de pensar o papel dos militares dentro de uma estratégia de soberania e de independência, formando parte, como já se delineia na criação do Conselho Sul-Americano de Defesa, no âmbito da Unasul, de um processo de integração que construa na região uma área de cooperação, de solidariedade e de prosperidade e justiça social para seus povos, com capacidade de enfrentar os desafios da agressividade imperial.

*Beto Almeida é membro da Junta Diretiva da Telesur.

Fonte: Brasil de Fato