ARTIGO
O movimento da PM na Bahia: a luta política e o falso dilema do direito de greve
Por Davidson Magalhães *
Publicado 13/02/2012 16:51 | Editado 04/03/2020 16:18
Essa realidade geradora de contradições e conflitos deve ser sempre examinada, para não se perder a visão de conjunto dos problemas envolvidos, mormente enfrentada não episodicamente, mas no contexto de construção e luta pelo Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento. Mais ainda no caso específico de militares, pelo caráter potencialmente explosivo e radicalizado dos conflitos e contradições envolvendo essa categoria de servidores mal ou bem, treinada e armada pela sociedade para lhe prover segurança.
A superação desses componentes estruturais da crise da atualidade deve, portanto, estar entre os objetivos das forças progressistas, sempre levando em consideração a correlação de forças e as tarefas imediatas da luta política que possibilitem uma acumulação de vitórias para um projeto efetivamente transformador.
O recente movimento da PM na Bahia ocorre nesse contexto e provoca um intenso debate na sociedade de forma geral e nos setores de esquerda. O direito de greve dos trabalhadores é uma bandeira histórica da esquerda, no Brasil e no mundo, desde sempre. É expressão do conflito entre capital e trabalho, e sua defesa não comporta dúvidas – pelo menos da parte da esquerda. O trabalhador faz greve contra o patrão, o capitalista. Quando se trata de servidor público, as coisas começam a ter matizes diferentes, posto que a greve do servidor, se não for bem ajustada, termina se voltando contra o povo. Daí porque ela precisa ser regulamentada de forma especial, para que o servidor tenha seu direito de greve respeitado, e para que o povo, sobretudo o mais humilde, que precisa dos serviços públicos mais elementares, não seja penalizado, sem qualquer culpa. Isto nos remete ao tema dos “serviços essenciais” à segurança e vida da população, e às paradas com garantias de serviços mínimos.
No caso de militar, o problema é mais complexo ainda, pelo fato de ser um setor armado. Qualquer manifestação não poderia ser feita portando armas. Portanto, diferentemente dos segmentos neoliberais que tentam criminalizar os movimentos sociais e inibir o funcionalismo público com o argumento da inconstitucionalidade, a esquerda tem na defesa do direito de greve uma questão essencial no processo de educação política dos trabalhadores e da luta de classe.
Reafirmar esses compromissos da esquerda com o direito de greve, significa, por princípio, aderir e apoiar toda e qualquer greve? Dizer sim a esta questão é abrir mão da análise do contexto histórico, é ignorar a realidade concreta e aderir ao idealismo político dogmático e principista. Senão, vejamos exemplos históricos: as centrais sindicais e os partidos progressistas e de esquerda teriam que se declarar favoráveis à greve dos caminhoneiros chilenos em 1973, contra o governo socialista de Salvador Allende? Apoiar, no início dos anos 1980, a greve dos trabalhadores de Gdansk, na Polônia socialista, liderados pelo Sindicato Solidariedade, seria uma posição coerente da esquerda? Deveriam as forças progressistas e de esquerda apoiar a greve dos operários petroleiros venezuelanos contra o governo de Hugo Chávez em dezembro de 2002?
A todas as estas questões, a esquerda deveria ter dito não. O que nem sempre aconteceu. Ficou demonstrado, posteriormente, que a CIA financiou a referida greve dos caminhoneiros de 1973 para desestabilizar governo socialista de Salvador Allende, através do desabastecimento dos artigos de primeira necessidade no Chile. No desdobramento houve o golpe militar de direita e Allende foi morto.
O movimento de direita desencadeado pelo Solidariedade, ainda que se considerassem algumas reivindicações econômicas corretas, terminou por contribuir para a restauração do capitalismo na Polônia. A posição de não apoio adotada por significativos setores de esquerda se revelou justa.
Denunciar a sabotagem ao governo Hugo Chávez, representada pela greve dos petroleiros da Venezuela, e defender a colaboração do governo brasileiro com envio de combustíveis ao país irmão foi uma adequada posição adotada pela esquerda.
Isto posto cabe a pergunta: porque um movimento que levanta reivindicações de uma corporação que ganha salários irrisórios e atua, na maioria das vezes, em condições precárias e perigosas, teve como conseqüência uma crise política com projeção nacional? Por que esse movimento provocou uma forte reação do governo da Bahia e da Presidente Dilma, ambos dirigidos pela esquerda e com a participação do PCdoB, e de amplos setores progressistas e de esquerda na Bahia?
Só uma análise concreta do movimento da PM na Bahia pode apresentar elementos para uma avaliação mais correta, do ponto de vista da esquerda. No dia 31 de janeiro, após a realização de assembléia dirigida pela Associação de Policiais e Bombeiros da Bahia (ASPRA) cerca de 400 PMs, armados, invadiram a Assembléia Legislativa da Bahia e tomaram posse das instalações do Poder Legislativo. Espalhou-se rapidamente um clima de terror por toda a Bahia, sem que fosse entregue ao governo do Estado uma pauta de reivindicações e exigido a abertura de negociações.
Arrastões tomaram conta de importantes regiões na capital e nas grandes cidades. Vias públicas foram fechadas com ônibus seqüestrados por manifestantes armados, deixando ao final um saldo de 172 homicídios, sendo 50 mortos com tiros na cabeça, o que configura execuções, destes um considerável número de moradores de rua. Uma especificidade deste movimento foi à conivência e certo incentivo dos oficiais mais graduados, formados no período do carlismo. Não estivemos diante de uma greve, um movimento puramente reivindicativo, que depois se radicalizou por insensibilidade do governo em negociar. Convivemos 12 dias com ações violentas que sitiaram o povo baiano, principalmente os trabalhadores – esses imediatamente prejudicados.
O movimento da PM baiana não foi criminalizado pelo governo, ele nasceu desafiando o Estado de Direito, e se firmou com métodos de terror. Uma esquerda conseqüente não poderia apoiar este movimento, mesmo sobre o suposto manto sagrado do direito de greve.
Outro aspecto fundamental é a conseqüência política deste movimento. Mesmo o Governo do Estado abrindo as negociações e atendendo parte significativa das reivindicações, o movimento se radicalizou. Ficou evidente que, para além dos objetivos específicos estava em curso uma articulação nacional para encurralar o governo Dilma, através da luta pela aprovação da discutível PEC-300. As suspeitas foram confirmadas pela investigação aberta, na qual as escutas autorizadas pela justiça provaram a articulação entre as ações de vandalismo e movimentos grevistas de outros estados. Esta articulação desenvolta e de grande potencial de desestabilização, tendo em vista a característica da categoria armada envolvida, serve a que projeto? Registra-se o fervor em que os baluartes da oposição, ao governo Wagner e Dilma, a exemplo de ACM Neto, saíram em defesa da PEC 300.
Nós, que lutamos pelo êxito do governo Dilma, e na Bahia pelo governo Jaques Wagner, não devemos tergiversar quanto ao apoio a estes projetos e o combate às tentativas de desestabilizá-los. Claro que as condições de trabalho e salário dos PMs tem problemas que precisam ser enfrentados. Mas, não é possível o apoio na Bahia, a uma provocação armada liderada por um filiado do PSDB, que desde o inicio colocou o foco no ataque político, com uma tentativa evidente de desgastar a imagem do Governo e que para atingir este objetivo, optou por tentar instaurar o caos institucional e abrir um vácuo político para ser ocupado pela oposição.
Portanto, sendo a dimensão política e a circunstância histórica dos acontecimentos uma pedra angular para definir um posicionamento da esquerda, a “greve”, da PM baiana não poderia ter o apoio e a legitimação dos setores de esquerda comprometidos com a luta emancipacionista.
* Davidson Magalhães é vice-presidente do PCdoB-Bahia