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História: Cuba e EUA na mesa de conversações

No último sábado (17),  foi apresentado em Havana o livro Da confrontação às tentativas de “normalização” – A política dos Estados Unidos para Cuba, de Elier R. Cañedo e Esteban Morales. Pesquisa rigorosa baseada em fontes até agora não acessíveis, o volume será material imprescindível para todos que se interessem por este que é um dos conflitos mais marcantes do mundo contemporâneo. Leia a apresentação do autor, em tradução exclusiva da redação do Vermelho.

Por Elier Ramírez Cañedo

A ideia original desta pesquisa nasceu da leitura do livro Cem Horas com Fidel, de Ignacio Ramonet. Em um de seus capítulos, Fidel, respondendo às perguntas de Ramonet, conta sobre os anos em que James Carter ocupou a Casa Branca e como se manifestaram as relações entre os Estados Unidos e Cuba naquele período. Em meio ao desfrute da leitura, não deixávamos de nos fazer a seguinte pergunta: Se a administração Carter marca um ponto de inflexão em relação à política de agressividade clássica contra Cuba dos sucessivos governos dos Estados Unidos e traz lições tão importantes para o presente e o futuro das relações entre Washington e Havana, por que não existe na ciência histórica cubana nenhum estudo sério e profundo sobre este período tão singular?

É que realmente os maiores aportes historiográficos sobre o conflito Estados Unidos-Cuba, na etapa posterior a 1959, centraram sua atenção principal – logicamente pela necessidade de condená-la e dá-la a conhecer ao mundo – na política hostil de Washington contra a Revolução Cubana e em administrações como as de Eisenhower e Kennedy, onde tiveram lugar os eventos históricos mais salientes e intensos da histórica e dramática confrontação, como Girón e a Crise de Outubro.

Contudo, pensávamos que embora o povo cubano esteja indubitavelmente curtido na confrontação, devia também preparar-se para a negociação e para participar em um possível processo de normalização das relações, pois nesse terreno também há que saber se sair honradamente, sem ceder em nada no que respeita a nossa soberania e nossos princípios. O livro que hoje apresentamos, sustentado fundamentalmente em uma ampla e valiosa documentação desarquivada e na consulta de importantes fontes periódicas e orais de ambos os países, pode oferecer muita luz aos cubanos – em especial aos mais jovens –, sobre o que move os Estados Unidos, sobre os interesses e os objetivos que o governo desse país tem nos reduzidos momentos em que se colocou a possibilidade de explorar a “normalização” das relações com Cuba, processo que somente se pôs de manifesto até hoje durante as administrações do republicano Gerald Ford (1974-1977) e do democrata James Carter (1977-1981), alcançando sua maior maturidade nesta última.

Quando iniciávamos esta pesquisa, que teve como base uma tese de mestrado e depois de doutorado, sob a magistral orientação do Dr. Esteban Morales Domínguez, estávamos realmente preocupados com a pouca documentação primária existente para poder levar adiante nosso projeto, mas nossa sorte começou a mudar quando em 2007 tropeçamos na Biblioteca do ISRI com uma grossa e preterida pasta de documentos relacionados com a política da administração Carter para Cuba. Ao indagar um pouco, descobrimos que tinha sido doada à instituição durante a visita do ex-presidente Carter a Cuba em 2002. Era realmente um material de grosso calibre: memorandos de conversações entre autoridades de ambos os países; diretivas presidenciais; memorandos de análises presidenciais; documentos de consulta e de debate sobre a política para Cuba entre as principais figuras do executivo estadunidense; informes de congressistas; telegramas enviados pelo Escritório de Interesses em Havana ao Departamento de Estado e vice-versa, entre outros materiais de interesse, que constituíram a base fundamental sobre a qual se escreveu este livro. Depois pudemos consultar na internet outro grande número de documentos desarquivados nos Estados Unidos e também alguns muito reveladores no Departamento de Versões Taquigráficas do Conselho de Estado, relacionados com nosso objeto de estudo.

Não foi nada fácil obter as treze enriquecedoras entrevistas que aparecem citadas de personalidades de ambos os países, tanto pessoas participantes nos eventos que são descritos e analisados no livro, como reconhecidos estudiosos do tema. Mas talvez o mais interessante no processo de elaboração desta pesquisa – agora convertida em livro – foi constatar nos próprios documentos norte-americanos, como algumas das figuras mais representativas do Executivo estadunidense quanto ao desenho da política para Cuba, especialmente da administração Carter, se davam conta do quanto era errada a postura negociadora dos Estados Unidos com a Ilha, ao adotar uma política de condicionamento, onde se estabeleciam nexos irracionais entre assuntos estritamente bilaterais com problemas multilaterais.

Só me limito a citar um desses documentos, que me parece fundamental. Refiro-me ao memorando que Robert Pastor, assistente para a América Latina do Conselho de Segurança Nacional, enviou a seu superior, Zbigniew Brzezinski, em 1º de agosto de 1977. Pastor compreendia perfeitamente que, se na realidade os Estados Unidos queriam alcançar a “normalização” das relações com Cuba, a tática de negociação que estavam implementando com a Ilha era pouco esperançadora. Considerava que não devia ser abordado o tema da presença de Cuba na África e as relações cubano-soviéticas em negociações diretas com os cubanos, pois no intento de obter a satisfação dos interesses internacionais dos Estados Unidos, ambas as partes ficariam frustradas, o processo de normalização se deteria e nem sequer poderia conseguir-se uma solução exitosa a problemas de interesse nacional e mútuo.

“A relação de Cuba com a União Soviética – expressou Pastor no citado memorando – não mudará como resultado direto das negociações com os Estados Unidos, contudo mudaria na medida em que se produzir o processo de normalização. Cuba não pode permitir-se nem econômica, nem politicamente suscitar abertamente o antagonismo da URSS discutindo sua relação com os EUA, mas na medida em que se estabeleçam os vínculos comerciais e financeiros com os EUA, Cuba de maneira muito natural buscará uma maior autonomia, e isso significa reduzir sua dependência da URSS. Portanto, eu recomendaria que não prosseguíssemos com este tema (ou criassemos expectativas estadunidenses sobre ele) durante as negociações.”

Sobre a presença de tropas cubanas na África e de como este tema devia ser manejado nas negociações com a Ilha, indicou: “Temos considerado o aumento das atividades de Cuba na África como um sinal de interesse decrescente por parte de Cuba a respeito da melhoria das relações com os EUA, e Kissinger uniu as duas questões – a retirada de Cuba de Angola a fim de conseguir melhores relações com os EUA – só para fracassar em ambas. Existe uma relação entre as duas questões, mas se trata de uma relação inversa. Enquanto Cuba tenta normalizar relações com as principais potências capitalistas do mundo, Castro também experimenta uma necessidade psicológica igualmente forte de reafirmar suas credenciais revolucionárias internacionais. Não afetaremos o desejo de Castro de influir nos acontecimentos na África tratando de adormecer ou deter o processo de normalização; este é um instrumento equivocado e não terá outro efeito que não seja deter o processo de normalização e descartar a possibilidade de acumulação de influência suficiente sobre Cuba por parte dos EUA, que em última análise, pudesse incidir na tomada de decisões de Castro”.

Segundo disse Pastor em um de seus livros publicado em 1992, a causa que conduziu ao fracasso do processo de “normalização” das relações entre os Estados Unidos e Cuba durante a administração Carter, foi que Fidel Castro valorizou mais seu papel na África do que a normalização. Contudo, o documento assinalado anteriormente do próprio Pastor, tira muita credibilidade a sua afirmação posterior, pois o mesmo tinha exposto os elementos que podiam afetar negativamente o processo dirigido à “normalização” das relações, como de fato ocorreu. Evidentemente, em suas memórias Pastor tratou de isentar de culpa a administração da qual fez parte, pois na documentação que consultamos se demonstra que ele diferia em suas análises da maneira como Washington pretendia negociar com a Ilha.

Apesar das ousadas recomendações de Pastor a Brzezinski, este último evidentemente não as tomou em conta, pois finalmente a política que se aplicou no diálogo com a Ilha foi a de condicionar o avanço do processo de normalização à retirada dos efetivos militares cubanos da África. O próprio Pastor seria partícipe das conversações com as autoridades cubanas, onde esse tipo de política foi executado, trazendo como consequência, como bem tinha advertido Pastor e havia ocorrido também a Kissinger, o congelamento do processo dirigido a “normalizar” as relações com Cuba.

Na entrevista que pudemos fazer com Pastor, este indicou: “Meu memorando não persuadiu o gabinete, nem o presidente. Em nossas conversações em Cuernavaca e Havana, eu segui mais a política do governo dos Estados Unidos do que a que eu havia proposto. Como nós aprendemos, minha análise era correta”.

Outro aspecto nevrálgico que o livro descreve e fundamenta é a posição histórica e consequente do Comandante em Chefe, Fidel Castro, sobre a normalização das relações com os Estados Unidos. Pensamos que fica claro no livro que a postura de Fidel – apesar do que alguns tontos e mal intencionados pensam e dizem –, sempre foi a de estar na melhor disposição para o diálogo e a negociação com nosso vizinho do Norte, para resolver o conflito entre ambos os países. Os próprios documentos desarquivados nos Estados Unidos que consultamos, especificamente das administrações Kennedy, Johnson, Ford y Carter, refletem claramente esta vontade de Fidel. Contudo, o líder da Revolução Cubana tem insistido, com sobeja razão e tendo sempre como respaldo o direito internacional, que este diálogo ou negociação seja em condições de igualdade e não persiga o objetivo de que Cuba ceda um milímetro sequer de sua soberania ou abjure a algum de seus princípios.

Por outra parte, fica claro no livro que não houve em Fidel dogmatismo algum em suas posicões sobre uma negociação com os Estados Unidos. Durante a administração Ford, Cuba pôs como pré-condição para uma negociação com os Estados Unidos, o levantamento do bloqueio, mas durante a administração Carter, esta posição foi um pouco mais flexível, dados os sinais positivos que se perceberam no novo presidente democrata e que criaram realmente esperanças de uma mudança na política de Washington para nosso país. Nessa conjuntura, Cuba foi realmente benevolente com a administração Carter, pois se algum dos dois países tinha sobejos e justificados direitos e motivos para fixar condicionamentos, este era Cuba, que tinha sido historicamente o país agredido e bloqueado economicamente. Contudo, apesar desta posição da Ilha, os Estados Unidos adotaram novamente uma política pouco construtiva, ao manter seu criminoso bloqueio econômico e, ao mesmo tempo, a partir de uma posição de força, fixar condicionamentos para que se pudesse avançar no processo de “normalização”.

Recordemos que quando nós, cubanos, cedemos parte de nossa soberania no início do século 20 aos Estados Unidos mediante a Emenda Platt, com o objetivo de que as tropas estadunidenses abandonassem definitivamente a Ilha e sob a ilusão de alguns célebres independentistas que foram partícipes diretos naqueles acontecimentos, de que mais adiante se alcançaria a independência absoluta sem grandes contratempos, os Estados Unidos converteram Cuba em uma neocolônia e a independência absoluta não chegou até quase 60 anos depois de uma longa luta, na qual caíram milhares de cubanos.

Fidel, profundo conhecedor da História de Cuba e respaldado majoritariamente pelo povo cubano, não permitiu jamais que uma história como essa se repetisse. Estou seguro de que as gerações presentes e futuras tampouco o permitiremos, e se o livro que hoje apresentamos contribui em algo para isso, nos sentiremos profundamente satisfeitos.

Fonte: Cubadebate
Traduzido por José Reinaldo Carvalho, editor do Vermelho