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Cap. XVII – Abaixo as rezas!

Chica desconfiou da gravidez numa terça-feira, dia de seu orixá; antes de Maújo pôr fim ao tédio, de Xisto sair do porão. O secretário não se candidatara, ainda não. As beatas continuavam praguejando contra as estatuetas.

O mênstruo atrasou, esperou mais quinze dias, ela, foi ao médico. Disse a Maújo, ajudou-o no desfastio. O médico recomendou coitos repetidos para amanhar a prenhez, preparar-se para o parto. Ela subiu, desceu ladeiras, amassou sem descanso a terracota, com a toalha no ombro para remover o suor. Moldou fêmeas buchudas, contorcendo-se, ventres ovais; fêmeas de quatro, o macho espetando-as. Na pousada, depois do baseado, fez acrobacias surrealistas com Maújo. Mirando-se no espelho para repetir as poses no massapê. No chuveiro, outro ritual.

– Que nome daremos ao menino?

– Não sabemos ainda se é menino ou menina. Quer fazer o exame?

– Não! A surpresa faz parte da gravidez feliz.

A barriga com intumescimento; no baixo-ventre, a vagina úmida movendo-se impaciente. Cresceu lenta a barriga, ela sentiu-se abaulada, consolidando o costume de dormir com o ventre para cima. Exigiu de Maújo, antes de pegar no sono, apoiar a mão sobre o talho vaginal, para guardar o nicho uterino. Continuou subindo o outeiro do Carmo, enfeitando jarros, agora um no aposento da pousada.

Meio mundo lhe receitou unguentos para nutrir a gravidez: cozimentos, rezas. Um ou outro capoeirista, por proteção, descia com ela a ladeira, depois de fechada a quitanda. No fim do mês, chamou Maújo:

– Comemos uma moqueca?

Comia até não poder; dias, uma semana tomando chá de erva doce para estancar o intestino.
Contraiu infecção, curou-se com chá da folha de begônia-vermelha. As pretas do terreiro a instruíram. “Erva-de-sapo-vermelha, Chiquinha… É bom pra febre, pra bexiga solta.”

Maújo parou de jurar a morte de Costa Neves; preocupou-se com o que Xisto, sem o compromisso com o Partido, podia dizer nas praças.

– É capaz de me dedurar para ver Chica de novo vulnerável – disse a Caetano.

– Paranóia! Não duvido que Xisto esteja delirando. Mas quem está paranóico é você! Não temos um dissidente dedo-duro.

– Temos um ex-militante estragado, que perdeu a razão.

– E um militante com delírio persecutório! Estou feliz por não ter sido você que foi falar com ele; senão estaria tendo pesadelos, com suores quentes, vendo o fantasma de Xisto.

– Melhor levar uma carreira dos tiras da Veraneio.

– É com isso que você deve se preocupar.

– Vou sair sábado à noite, voltar ao Estrela com Chica. Não querem ir?

– É cedo para comemorarmos juntos. Já você… aproveite enquanto Chica não está no resguardo.

No Estrela, Chica tomou dois goles de cerveja pensando em comida; começou a ter desejos cedo. À meia-noite desceram para o Maconhão, de táxi. Muita gente, dentro e fora do bar. O salão escuro, fluorescente nas prateleiras de bebidas, brilho indeciso nas luzes da radiola e estrelas pingando raios nas mesas externas.

Nas mesas, sonhos anarquistas, de felicidade impossível.

A Veraneio passou roncando no calçamento da rua à beira da praia. Polícias gordos, com impulso de pôr as mãos na pele gentil dos moços. Nunca foram moços, os tiras, queriam pôr fim aos moços dali. Outros, magros, penteados, feições precocemente duras. Usavam jaquetas, pulôveres cheirando a mofo, convencidos de que nada deviam aos tiras de Nova York.
O carro parara adiante, na frente do Fortim do Queijo. Também o motorista compôs o cerco ao bar. Aproximaram-se quietos das mesas. A razia não abriu mão de cumprimentos insossos. Os garçons, passivos, não foram intimados a mostrar os documentos. “Recrutemos o garçom; pode ser o nosso arquivo acima de suspeitas”, pensou Maújo; pensou menos de um segundo para em seguida mostrar os documentos. Chica tirou da bolsa os seus. “Queira tirar todos os objetos, por favor…” A bolsa emborcada sobre a mesa, caneta, bloco de anotações, molho de chaves, alicate de unhas, vidro com esmalte. Nada de maconha. O polícia virou-se para outro lado, sem o butim da pilhagem.

Fim da razia.

Um casal foi levado nos fundos da Veraneio; tinha maconha, dois cigarros que seriam queimados ao fim da noite, na celebração da manhã sob um coqueiro oscilante.

– Você não tem fumo escondido? – quis saber Maújo de Chica.

– Não aqui. Não preciso andar com baseado na bolsa, não fumo à toa.

– Na loja, na oficina?

– Na oficina às vezes. Costumo deixar no baú, no fundo, para uso na noite da praia.

– No fundo do baú, onde a minha, a sua vó guardava as calcinhas…! O lugar mais escondido e mais manjado.

– Ninguém se atreveria a abrir o meu baú. Podem até desconfiar, mas daí a destravar o cadeado, abrir e remexer na minha intimidade! Demais!

– A velha da pousada é muito curiosa.

– No fundo das panelas dela, não nas minhas calcinhas.

– Beije-me.

– Estou com fome.

– Moqueca?

– Quero peixe cru, descamado, cobertura de coentro.

– Essa agora…

– Essa agora. Estou com desejo.

O garçom trouxe postas de pampo sem cabeça, sem a espinha dorsal, despeladas; ramos de coentro por cima, sal, molho de soja; folhas de hortelã e raspas de gengibre. Queria Chica sentir temperos fortes. Com o gengibre, abriria a boca para a brisa gelada.

– Você não está em transe, Chica?

– Não. Estou grávida de dois meses.

– Beije-me agora.

– Com gengibre, coentro?…

– Com todos os orixás, beije-me.

A Veraneio sumira deixando um vácuo de desamparo em cada mesa. Por força do costume, a balbúrdia foi retomada. Os verbos, usados nos diversos tempos, serviram para a afirmação pessoal quase perdida. O encanto rotineiro de um meteoro em trânsito substituiu descobertas. Os corações, engajados em buscas, deram-se uma trégua.

– Estamos assistindo ao fim do paródico Maconhão ou da mediocridade policial? Chica não teve resposta.

Os radicados amantes do riso fácil, criam-se cidadãos comunais dando credibilidade ao Maconhão… à instituição. Tinham todos miçangas enfeitando sonhos.

O sonho de Chica era criar o filho com liberdade de crenças, aninhar o pirralho no regaço para, das mamas, correr pelas ladeiras; moldar, como ela, a felicidade de seu jeito. Longe das beatas, do curral do secretário.

Maújo acolheu os sonhos de Chica, do mesmo modo como ela amassava a terracota. Urdiu, nas reuniões, insubmissões ligeiras, sindicato com artesãos, pintores, liga de capoeiristas, atores, músicos. Na Praça da Preguiça, um teatro ao ar livre; no Largo do Amparo, um anfiteatro para assembleias populares. O povo travesso em passeata nos becos, ruas, matando a sede nas bicas.

– Abaixo as rezas! – gritou.