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MS: Tribunal Popular da Terra denuncia violência contra indígenas

Com a participação de representações indígenas, quilombolas, do MST, da CUT e de inúmeras entidades do movimento social e sindical, o Tribunal da Terra do Mato Grosso do Sul encerrou neste domingo com uma enérgica conclamação em defesa da reforma agrária, dos direitos humanos e da democratização da comunicação.

Por Leonardo Severo*

Os “jurados” concluíram com uma denúncia contundente do “aumento da participação das corporações do agronegócio e de companhias multinacionais, que se apoderam em ritmo acelerado de nosso território e recursos naturais”.

De acordo com o secretário geral da CUT-MS, Alexandre Costa Júnior, com apoio dos mais expressivos setores do movimento popular do Estado, o Tribunal elevou o tom contra a extrema concentração agrária, que tem vitaminado agressões e desmandos contra os trabalhadores rurais sem terra e os indígenas.

“É preciso denunciar a violência criminosa do latifúndio e a violência silenciosa da mídia, que atuam coordenados”, frisou o dirigente cutista. Alexandre lembrou que no caso de Três Lagoas, a cultura da impunidade e os abusos se estendem até os operários da construção civil, com inúmeras práticas antissindicais das empresas responsáveis por erguer na cidade a “maior fábrica de celulose do mundo”. Conforme denúncias do Sindicato dos Trabalhadores da Montagem Industrial de Três Lagoas, estas “construtoras” têm contratado serviços de “segurança” – vinculados a policiais locais – que se comportam como jagunços para intimidar os dirigentes, a fim de que contestem e calem frente à política de arrocho e precarização mantida nos canteiros.

Apesar de que o grosso das execuções acontece no campo – nos últimos nove anos, foram mais de 250 indígenas assassinados no Estado – as cidades acabam respirando o cadáver pestilento do crime e da impunidade. E inúmeros Combatentes do movimento sindical e social também têm tombado. CRIMES No dia 17 de novembro de 2011 foi assassinado em frente aos filhos, o cacique Nísio Gomes, líder kaiowá-guarani, no acampamento Tekoha Guaviry, na BR-386, entre Amambaí e Ponta Porã. O relato de um dos filhos ao Tribunal foi claro: morto, pois ficaram marcas da quantidade de sangue perdido, o corpo foi levado pelos jagunços. Dois dias antes, nada menos do que 40 homens armados haviam invadido o local em suas Hilux e S-10 à procura do cacique.

A assembleia máxima dos kaiowá-guarani, o Conselho Aty Guasu, denunciou o assassinato, mas após um saque do auxílio benefício de Nísio em Brasília, de forma ridícula, a polícia suspendeu as buscas e ainda indiciou o filho do cacique que denunciou o ataque por falso testemunho. Outro caso chocante aconteceu no dia 3 de junho do ano passado, na Aldeia Cachoeirinha, onde cerca de oito mil índios vivem em apenas dois mil hectares, a oito quilômetros de Miranda, a 203 quilômetros de Campo Grande.

Eles reivindicam 36 mil hectares tomados por latifundiários da região. A própria aldeia virou uma ilha, cercada pelas fazendas. Pois eram 22 horas e 40 minutos quando um ônibus escolar que retornava com 40 alunos indígenas para a aldeia foi alvejado por marginais que lançaram um coquetel molotov. Resultado: cinco alunos gravemente queimados, além do motorista. Uma das estudantes, Lurdesvoni Pires, de 28 anos, mãe de três filhas, faleceu com 97% do corpo queimado.

Conversei com uma das sobreviventes, Naiara Francisco Vitor, carinhosamente chamada de Binha. Hoje com 19 anos, ela sonhava com o curso de Direito e se empenhava trabalhando de dia e estudando a noite para seguir em frente. “Aquela garrafa cheia de gasolina foi o fim para a minha amiga e complicou ainda mais a vida de todos nós. Não consigo ficar em pé por muito tempo. As pernas doem muito. São agulhadas fortes, pinicam, não dá”. Binha teve queimaduras de primeiro e segundo graus do joelho para baixo e numa das mãos.

“Fiquei um mês e 20 dias no hospital e mais um mês em casa. Quando saí do hospital tinha um homem me encarando, que ficou bem assustado. Ele estava no celular e saiu correndo, como se tivesse medo que eu lhe reconhecesse”, relatou Binha, que por temer o retorno à cidade, congelou o sonho. Elvis Polidoro, um dos dirigentes indígenas da aldeia lamenta a morte de Lurdesvoni, lembrando que ela faleceu e deixou as quatro filhas pequenas, que agora estão sendo criadas pela avó. Em busca de justiça, ele próprio está sob ameaça. “Os fazendeiros já mandaram o recado: qualquer dia você tomba”.

A polícia ainda não encontrou os culpados. CONCENTRAÇÂO Conforme a Comissão Pastoral da Terra (CPT-MS), em Mato Grosso do Sul os pequenos estabelecimentos, com até 200 hectares, correspondem a 72,08% do conjunto, mas ocupam tão somente 5,01% da área. Já os estabelecimentos com mais de mil hectares são apenas 10,18% e ocupam 76,93% da área do Estado.

Esta enorme concentração de propriedade nas mãos de alguns poucos proprietários têm provocado um recrudescimento da violência contra os trabalhadores sem terra e indígenas, além de intensa criminalização dos movimentos sociais pela mídia, que atua para encobrir os crimes do agronegócio, intimamente ligado ao capital estrangeiro, e turbinado com recursos públicos do BNDES. Um dos graves problemas apontados pelo Tribunal foi precisamente o estabelecimento do agronegócio do eucalipto-celulose, o que transformou a região de Três Lagoas na “capital mundial da celulose”.

Nesta cidade está sendo erguida, para entrar em operação ainda em 2012, a gigantesca fábrica de celulose que produzirá 1,5 milhão de toneladas por ano de celulose branqueada de eucalipto. Para o investimento de R$ 5,1 bilhões, o BNDES liberou financiamento de R$ 2,7 bilhões para a Eldorado Celulose e Papel, controlada pela J&F Participações, holding que fatura anualmente mais de R$ 55 bilhões e controla empresas como o JBS, o maior frigorífico do mundo. Para não nos estendermos sobre o naipe do negócio, vamos lembrar apenas que o ex-presidente do Banco Central (BC), Henrique Meirelles, assumiu recentemente a presidência do Conselho da J&F Participações.

Conforme o próprio site do BNDES, os descomunais investimentos na nova planta criarão “mil empregos diretos e quatro mil indiretos”. Ao mesmo tempo em que vitamina com montanhas de dinheiro público a pujança de uma produção voltada fundamentalmente para o mercado externo, toda a microrregião de Três Lagoas sofre com a ausência de políticas públicas e de investimento do Estado nos assentamentos rurais.

De forma específica, alerta a CPT-MS, os municípios de Brasilândia, Água Clara, Ribas do Rio Pardo e Três Lagoas, com grande presença de assentamentos rurais – são dez projetos, totalizando 1.188 famílias, resistem no campo, num território de pouco mais de 35 mil hectares. A consequência quase imediata desta expansão sem limite do “deserto verde” das plantações de eucalipto tem sido a disputa territorial com a reforma agrária, “assediando, com a possibilidade de trabalho nos

eucaliptais”, até mesmo os projetos de assentamento já conquistados, mais ainda não consolidados em virtude da precariedade das políticas públicas. “Em 2011 a Eldorado Florestal acessou junto ao BNDES R$ 2,7 bilhões, enquanto o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) contou com orçamento anual de R$ 502,7 milhões”, aponta a CPT-MS, dando a dimensão do descalabro.

Para o Tribunal da Terra, é evidente a existência de um conluiou entre o Estado, o latifúndio e o agronegócio das papeleiras, num negócio que se traduz em apropriação das terras indígenas e quilombolas, contaminação de recursos hídricos e desertificação. “Reiteramos que o Estado é culpado em suas três esferas: na federal, por meio das vantagens creditícias concedidas pelo BNDES; na estadual via poder executivo, com a flexibilização da legislação ambiental e isenção de impostos como o ICMS; e municipal por meio também da liberalização de impostos, doação de terrenos e demais incentivos”.

Latifúndio Midiota

Ao final do evento, no lançamento do meu livro Latifúndio Midiota, crimes, crises e trapaças, falei que para os jornais da cidade, o evento que congregou cerca de duas centenas de pessoas numa radiante manhã de sol de domingo era não notícia. No tempo que esperava a carona do companheiro Alexandre, pude ler todos os jornais de Campo Grande.

Em dois, uma matéria em destaque se repetia: grande empresário havia doado sua Mercedes Benz para uma entidade filantrópica. O título era o mesmo em dois jornais. O texto também. Mero release. Divulgação das mais medíocres. Outro falava sobre uma solenidade da Fecomércio, a Federação dos donos de lojas da cidade. E mais um dizia que o dia
da mentira dividia opiniões. E o Tribunal? Que Tribunal?

*Leonardo Wexell Severo é escritor, autor do livro "Latifúndio midiota"