Ali Kadri: A geopolítica da especulação e os preços do petróleo

Todo o mercado é um processo de relações sociais e de poder. Em todo mercado há o que fazem o preço (price makers) e os que o aceitam (price takers). Mas o mercado do petróleo não é um mercado vulgar e, portanto, a luta para controlar o mercado do petróleo não é uma luta vulgar.

Por Ali Kadri*

Sendo o petróleo elementar para a acumulação global e mantendo-se o sistema monetário em parte baseado em mercadorias , o grau de controlo do mercado do petróleo reflete-se num certo grau de poder reforçado em todos os outros mercados. Mas, para controlar um mercado do petróleo, o principal ator, que é sem dúvida os EUA, tem que desenvolver uma estratégia de intervenção na fonte, militar ou de qualquer outro tipo, que anule os outros atores.
 
Por consequência, a extensão com que os EUA introduzem tensões nas áreas produtoras de petróleo, calibram o grau com que os estados petrolíferos abdicam da sua soberania no que se refere ao petróleo e mantém à distância outros actores importantes, são medidas que representam a ação colateral necessária para estabelecer os alicerces do padrão petrodólar. Este exercício permanente de poder constitui a pedra angular do dinheiro-mercadoria ou, mais concretamente, do sistema monetário global baseado no petrodólar.

À superfície das coisas, os preços do petróleo mudam em reação a fatores econômicos e geopolíticos. Mas, na história recente, a amplitude das variações do preço do petróleo tem sido atribuída mais sistematicamente aos crescentes riscos geopolíticos relacionados com o Irã e à liquidez abundante em contraposição com as margens de refinação e almofadas mais pequenas – uma almofada é a dimensão da faixa entre a oferta e a procura.
 
A bolha petrolífera tem vindo a absorver parte do excesso de liquidez, fortalecendo o dólar, e reforçando as rendas imperialistas dos EUA. Apesar de os preços internacionais de petróleo muito altos poderem frustrar uma recuperação global já de si frágil, que tem estado a trabalhar em vão no que se refere a postos de trabalho, a arrogante guerra dos EUA contra o Irã continua a agitar o mercado.

Por baixo, no entanto, os preços do petróleo são demasiado importantes para serem confiados ao 'mercado'. Com a manutenção do padrão do petrodólar, a subida dos preços do petróleo prejudica todas as economias importadoras num grau mais elevado do que acontece com a economia dos EUA. As variações do preço do petróleo engendram pois uma mudança no grau de poder que a economia dos EUA possui vis-à-vis as outras. No ciclo depressivo em curso, que não cede apesar do amento das dívidas, ganha terreno a reafirmação da estatura dos EUA através do mecanismo de controlo do petróleo. O capital financeiro também não deixa de ficar satisfeito com a expansão do endividamento dos EUA e do aumento do capital fictício.

O capital, no seu todo, tem mostrado robustez em resultado das dívidas que assoberbam os trabalhadores reduzindo a sua capacidade de desfrutar uma vida decente. Depauperar a classe trabalhadora, numa época de crise predominante na ideologia social, aumenta a quota de valor real e de riqueza adquirida pelas classes dominantes. Em certo sentido, o crescimento de dívidas ou capital fictício tiveram efeitos não fictícios e terríveis sobre as classes trabalhadoras nas economias mais avançadas.
 
Mas as consequências reais mais terríveis da expansão do capital fictício recaem sobre os povos do Médio Oriente. As guerras de agressão destinadas a financiar as dívidas crescentes dos EUA através de reivindicações de direitos aumentam de intensidade devido à fraqueza do elo que liga o petróleo ao dólar. Assim, os preços do petróleo têm muito mais a dizer sobre o estado da economia global do que simplesmente o custo do petróleo à saída da bomba.

Preços voláteis do petróleo

Os preços das ramas de petróleo apresentam uma grande variabilidade . Muito recentemente, o Preço do Cesto de Referência da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) atingiu os 140 dólares por barril em Julho de 2008, desceu para os 35 dólares no final desse ano, e agora os preços estão mais uma vez acima dos 100 dólares. A especulação financeira, em especial a compra de futuros de ramas de petróleo, esteve por detrás do brusco aumento do preço em 2008 e o actual pico [de preços] é impelido pela especulação em torno dum futuro com uma grande carga geopolítica.

Vale a pena assinalar que as tão faladas considerações geológicas relativas ao fim do petróleo não são responsáveis pelas subidas do preço do petróleo, nem em 1973 nem em 2004. As reservas de petróleo têm importância a longo prazo; os atuais preços do petróleo não foram determinados por crenças que pertencem ao longo prazo. Essas considerações geológicas apenas têm impacto no preço numa perspectiva de futuro ou a longo prazo. Mas os problemas geopolíticos perturbam os mercados instantaneamente e tornam-se fatídicos num instante.

Os problemas no Golfo, passados e presentes, ganharam um aspecto permanente e, com as conversas sobre um ataque inevitável ao Irã, estão a aumentar de intensidade. A maior preocupação a curto prazo que influencia o preço do petróleo prende-se com uma repentina quebra de abastecimento e um maior risco da diminuição na almofada fornecida pela Arábia Saudita que fornece o grosso da capacidade excedentária .

Do lado do consumo, a procura de petróleo continua a aumentar entre um a um e meio por cento em média, por ano. O aumento na taxa de crescimento da China e de outras partes da Ásia nos últimos vinte anos contribuiu para um aumento regular da procura de petróleo. Os constrangimentos na capacidade de produção do petróleo de extracção fácil e "doce" [com menor teor de enxofre] no setor a montante (países da OPEP) e nos EUA a jusante estão a tornar-se evidentes pouco a pouco.

No entanto, até agora, os constrangimentos na oferta não têm constituído um problema per se porque há mais refinarias a aceitar o crude de qualidade mais pesada e a almofada tem vindo a emagrecer. Deve notar-se que o mercado do petróleo só pode funcionar eficazmente se estiver disponível um certo volume de capacidade de produção de excedentes. É necessário um volume extra para compensar os efeitos das greves, das tempestades e das guerras mais pequenas. Mas nenhuma almofada será suficiente numa guerra que leve ao fecho do Estreito de Ormuz. Muito especialmente, o efeito do medo que se desenvolve em torno desta história falseada, é dum significado invulgar para alimentar oscilações profundas no preço do petróleo.
 
Mas, nem o mercado integrado nem os serviços de informações são suficientemente estúpidos para acreditar nessa invenção sobre a capacidade militar do Irã. Imaginem que as capacidades do Irão têm potencial para bloquear os estreitos e conter um ataque dos EUA no Golfo. O dólar, os EUA, o mundo tal como o conhecemos, ficaria tudo na mesma? Tal como com o Iraque, o poder do Irã está a ser exagerado a fim de justificar a agressão. O militarismo e o controlo dos EUA sobre o flanco oriental do Golfo Pérsico são muito mais relevantes como províncias de acumulação de capital do que a contribuição de receitas petrolíferas insignificantes.

O preço do petróleo é estabelecido cada vez mais nos mercados de futuros. Assenta num conjunto de mercados de futuros, mercados à vista, mercados a prazo e mercados de derivados em que, com liquidez em expansão, lideram os mercados de futuros. Os participantes nestes mercados englobam importantes instituições financeiras como a Goldman Sachs, a Morgan Stanley, a Merrill Lynch, a Société Générale, e a J.P. Morgan. Um grande número de hedge funds e de apostadores individuais também fazem parte deste mercado.

Os hedgers, podemos acrescentar, também são especuladores dado o seu medo de que o preço real venha a ser menos favorável do que o preço que estão dispostos a garantir. Assim, no mercado de petróleo atual os principais agentes são especuladores. A principal conclusão a tirar daqui é que o preço do petróleo também oscila em resposta a taxas diferenciais de retorno ao investimento noutros mercados e não unicamente a questões de oferta-procura. Assim, na presença duma ampla liquidez e de baixas taxas de retorno noutros mercados, as percepções cozinhadas ou as expectativas do que poderá vir a ser o equilíbrio oferta-procura nos meses seguintes inclusive, o medo duma repentina escassez relacionada com uma futura guerra no Golfo, arrastam o excesso de liquidez e tornam-se as forças motoras mais poderosas deste mercado.

Preocupações agravadas

As preocupações geopolíticas relacionadas com o Golfo e as ameaças de sanções ao Irã não são novas e sempre se infiltraram no mercado do petróleo desta ou daquela maneira. Desde há muitos anos que o mercado tem funcionado com estas análises sombrias como pano de fundo e coabitado com estas condições. Mas, ultimamente, os riscos subiram. As opiniões propagadas nos EUA por think tanks e pelos grandes meios de comunicação sobre um ataque inevitável ao Irã elevaram o nível de tensão. Quem alimenta estas informações ao mercado ainda desestabiliza mais, e não é por acaso, o preço do petróleo já de si instável.
 
O poder que emana do controle geoestratégico dos EUA nas áreas do petróleo e a alta variabilidade do preço do petróleo são elementos da mesma equação que se reforçam a si próprios e através dos quais os EUA aumentam o seu peso e a sua posição negocial em relação a outros agentes. O dilema para os importadores, especificamente a China, é procurar um equilíbrio entre reduzir o controlo dos EUA nas áreas petrolíferas, a fim de não ficar entalada estrategicamente em termos de abastecimento de petróleo, e não enfraquecer demasiado os EUA ao ponto de abalar o padrão do dólar americano, acabando por precipitar um processo de desvalorização/deflação da dívida do dólar.

Grande parte da gestão desta relação fluida depende de os EUA expandirem e calibrarem a intensidade dos conflitos em áreas petrolíferas estratégicas e a sua distorcida política monetária no setor financeiro, em relação ao modo como deseja que o impacto da flutuação do preço do petróleo seja distribuído entre a sua própria economia e a dos outros.

O controle do petróleo pelos EUA, ou o grau em que os regimes das áreas petrolíferas abdicam da sua soberania em relação aos EUA, é a principal garantia contra o seu endividamento crescente. Nesse sentido, guerras aventureiras em regiões petrolíferas que permitam aos EUA exercerem maior influência sobre o petróleo servem de mediação na contradição entre o desempenho econômico cada vez mais débil dos EUA e o endividamento que alimenta a financiarização.

A omnipresença de conflitos e guerras por procuração no Médio Oriente e em África refletem rivalidades persistentes relacionadas com a contradição entre os EUA e outros quanto à aquisição desproporcionada de rendas imerecidas ou imperialistas. Presentemente, vai certamente haver um esforço continuado dos EUA para retomar relações de poder com vista à persistência do morno ciclo de crédito, da precária rentabilidade financeira e dos resultados medíocres das campanhas do Iraque e do Afeganistão.

As sanções ao Irã não são destinadas a suspender o programa nuclear. Essas sanções são um prelúdio para a guerra. Enfraquecem estruturalmente o Irã enquanto formação em desenvolvimento e preparam-no para o ataque, como aconteceu no Iraque.

O velho padrão petrodólar não é uma identidade em que o valor duma determinada divisa tenha que ser estável em termos de produtos, que a priori exige que o dólar mantenha um valor estável em termos de produtos. Nunca houve, na história recente, falta de petróleo e, nunca os preços do petróleo foram estáveis. O forte elo entre o dólar e o preço do petróleo, que é inerentemente instável, é determinado pelo grau com que o poder dos EUA é estabelecido em relação aos produtores directos e aos importadores.
 
Segundo a opinião do Prof. Patnaik, este é um sistema produto/dinheiro baseado no poder. A variabilidade dos preços do petróleo é gerida em parte para preservar a envergadura imperial dos EUA dentro duma faixa em que os desequilíbrios globais pressionam a desvalorização do dólar, por um lado, e, por outro, o modo como os EUA usam a ameaça da desvalorização e deflação da dívida para extorquir dinheiro aos seus credores. A principal preocupação dos EUA provém do nível de liquidez que pode elevar a níveis politicamente intoleráveis os preços do petróleo à saída da bomba, e é por isso que ultimamente se tem falado em libertar reservas estratégicas , o que pode significar sinistramente que os preços serão geridos se o Irã for atacado. Neste sentido, o padrão petrodólar é um poder definido como instrumento produto-dinheiro, que contribui para e é alimentado pela conquista imperialista.

Sobre a questão da agressão ao Irã, o capital global divide-se em duas linhas: capital nacional que funciona como um meio de conta de capital controlada e um capital livre financiarizado internacionalmente. A colaboração tácita das elites globais condicionadas pela conta de capital, por ex. as elites chinesas, com a posição agressiva dos EUA para com o Irã só se manterá até ao ponto em que os prejuízos estratégicos em áreas petrolíferas comecem a desestabilizar perigosamente as suas economias nacionais em comparação com a erosão sofrida nas suas posses de riqueza denominadas em dólares.

Os capitais do terceiro mundo e outros capitais financeiros de livre circulação, em especial os que resultam duma financiarização acrescida (parasitas dos empreendimentos imperialistas dos EUA), sabem bem que um dólar estável repousa fortemente no grau de controle americano das áreas petrolíferas. Os capitais financiarizados ou de livre circulação continuarão a apoiar incondicionalmente os EUA. Quanto às elites de base mais nacional, uma coisa é manter a sua riqueza ligada ao dólar e outra coisa é pôr em risco a fonte real da sua riqueza, que deriva do desempenho das suas economias nacionais.

Como indício do crescente descontentamento em relação à posição abertamente agressiva dos EUA para com o Irã, a China, que no passado usou com moderação o seu poder de veto em questões fora da sua vizinhança, vetou a resolução do Conselho de Segurança da ONU sobre a Síria, que é a porta de entrada para o Irã. A luta na China entre as 'alas esquerda e direita' pode ser detectada pela forma como os controlos de capital têm sido instituídos até agora a favor da esquerda. A China tem sido a principal força impeditiva do embargo ao Irã. O modo como se está a formar um petro-renminbi alternativo na Ásia para pagar o petróleo iraniano é desastroso para os americanos e pode precipitar uma guerra mais cedo do que pensamos. Será que chegou o momento do empurrão e irá desfazer-se o apoio das [várias] alianças de classe às extorsões imperialistas dos EUA?

*Professor Sénior no Middle East Institute, Universidade Nacional de Singapura.

Fonte: Resistir.info