As virgens fumam “cigarros negros”, uma história da ditadura

Naquela tarde, no apartamento de Flora, tomando chimarrão, fui me inteirando. Patricia foi morta, metralhada junto com o companheiro, na cama, não lhes deram tempo nem de levantar (nunca soube se o companheiro era aquele responsável que tinha beijado ela fingindo que a beijava). Miriam esteve dois anos na ESMA. Normita foi procurada na casa de seus pais. Bateram neles e eles, que conheciam seu domicílio, não disseram nada. Quando chegou o irmão e viu como batiam no pai, deu o endereço.

Éramos seis. Duas montoneras [1], duas “perras” (do ERP) [2], uma anarquista e eu. Éramos seis militantes na fábrica de lâmpadas. Eu trabalhei na roda dentada, nove horas pondo um filamento em cada dente, e depois soldadora elétrica. Normita trabalhava na estampadora. Patricia, Miriam, Alba e Flora lavavam os bulbos. Na fábrica havia 70 menores e tínhamos dois banheiros.

Na saída, íamos separadas a um bar na Avenida del Trabajo, com azulejos brancos, para “discutir conjuntura”, preparar estratégias para a sindicalização dos companheiros e falar de homens. As relações de militância para disfarçar a amizade de meninas. Pedíamos leite com biscoitos champagne. E os dois primeiros pontos liquidávamos rapidamente para nos perdermos no terceiro: vamos ao que interessa. Fora Normita e eu, eram todas virgens. E eu era a única que tinha companheiro e que não fumava “cigarros negros” [3]. Então, falava “do alto da experiência” e assim me escutavam. As ferozes guerrilheiras temiam que doesse. Miriam alucinava dores indescritíveis e nenhum prazer. Não havia como convencê-las do contrário. Normita, ao contrário, trepava como se o mundo fosse acabar no dia seguinte. E acabou, simples assim.

Alba era a única que cultivava por mim uma indiferença minuciosa. Eu era invisível para ela. Intermitentemente, entrava “em crise” e não podia pensar em nada mais do que nela mesma.

Patricia era a mais feia e a mais abnegada. A lei das compensações. Uma tarde, depois de nossa reunião, me disse que queria falar comigo. Pegou o mesmo ônibus.

-Preciso contar para alguém e não pode ser da minha organização. Estou apaixonada pelo meu responsável [4]. Ele é casado, mas sua companheira não milita.

– É recíproco?

-Não sei… Mas, outro dia, fomos fazer uma pichação e ele organizou para que nós dois ficássemos juntos dando cobertura numa esquina. Passou um policial e nos beijamos.

– O que você sentiu?

– Eu beijei de verdade.

– E ele?

– Acho que ele também.

O ERP, onde ela militava, assim como todas nossas organizações, era muito duro com essas coisas. Mas eu sentia uma grande compaixão. E dor, pelo seguinte: era a presença da polícia que autorizava um sentimento proibido pela organização. A clandestinidade dentro da clandestinidade.

Na hora do almoço, jogávamos vôlei na rua, em frente ao portão da fábrica. Normita não pegava uma bola. Quando ela vinha, tapava a cara com medo da bolada. Mas se empenhava. Pedia: “Joguem em mim de surpresa”. Um dia, depois de perder a bola, mais uma vez, defendendo-se dela, começou a chorar e saiu caminhando. A segui.

– O que foi? Você não está chorando porque não pegou a bola…?

-Não é isso. Você não entende. Quando tenho que tomar uma decisão sempre faço o mesmo. Imagine se me acontece isto em uma operação. Vou por em risco a atividade e os companheiros.

Fizemos um movimento, pelo qual começamos a convencer os companheiros que fizessem uma cota máxima de produção e que se distribuíssem o produzido para fazer os informes de produção, para que ninguém fosse pressionado a produzir mais. Isso era, ademais, para construir a confiança mútua entre os companheiros. Depois fizemos uma campanha para a sindicalização, com o argumento de que todos deviam estar registrados e o registro sindical valia para o Ministério de Trabalho. E, como éramos menores, não poderíamos trabalhar mais de 6 horas (trabalhávamos 9). A sindicalização era muito difícil porque os dirigentes do sindicato estavam vendidos e podiam avisar ao patronato os patrões. Tinha-se que fazer tudo muito rápido, sigiloso e tudo ao mesmo tempo. Conseguimos porque Domingo, que trabalhava na seção de lavagem, era filho de um dirigente do sindicato e lhe roubou as fichas para que nos sindicalizássemos todos, sem que a direção percebesse. Aí, Normita e Patricia foram decisivas: conquistaram o Domingo. Conseguimos tudo.

Depois dessa luta, eu consegui entrar na metalúrgica e perdi os companheiros de vista. A repressão impedia o exercício da amizade fora dos âmbitos de militância, que eram muito reduzidos.

Uma tarde, na plataforma da estação Villa Pueyrredón, vi a Alba vindo. Ia de braços dados com um rapaz. Os dois muito bem vestidos, mas ela muito magra e abatida, com olheiras. Pensei que poderia estar numa operação e estava disfarçada, ou que, em uma dessas crises, havia abandonado a militância e estava se perdendo com drogas. Em todo caso, me alegrava em vê-la, saber que estava viva, quando, a cada encontro com um antigo conhecido, trocávamos as notícias de quem morreu, como quem troca figurinhas. Não podia falar com ela. Por ela, por mim e pela atividade. Quando íamos nos cruzar fiz um esboço de sorriso, só para que ela soubesse que me alegrava em vê-la. Mas, como sempre, me respondeu com um gesto depreciativo e virou a cara.

Que raiva que me deu! Pensava que eu iria cumprimentá-la? Achava que eu não tinha a menor noção das regras de segurança? O que custava sorrir ou me olhar com cara de paisagem? Precisava demonstrar seu desprezo uma vez mais? Nesse momento pensei: “um dia vou te encontrar, quando cair a ditadura, e vou tirar satisfação por esse gesto, vai ter que explicá-lo, porque é preconceito de classe, coisa de “gorila” e as normas de segurança são uma desculpa usada para exercer esse desprezo”. Pensei as palavras. Iria lhe dizer assim, desse jeito.

Uns meses depois, encontrei a Flora num show de um Milton Nascimento embriagadíssimo. Cantamos com ele “Maria Fumaça”, “Oratório”, “Qualquer maneira”, “Travessia” e “Faca amolada”, as preferidas. No escuro do show, no meio do barulho, nos aproximamos, nos abraçamos e ela me cochichou ao ouvido que havia deixado de militar, que tinha uma filha e que queria que a visitasse, me deu o endereço e combinamos um encontro.

Naquela tarde, no apartamento de Flora, tomando chimarrão, fui me inteirando. Patricia foi morta, metralhada junto com o companheiro, na cama, não lhes deram tempo nem de levantar (nunca soube se o companheiro era aquele responsável que tinha beijado ela fingindo que a beijava). Miriam esteve dois anos na ESMA [5]. Normita foi procurada na casa de seus pais. Bateram neles e eles, que conheciam seu domicílio, não disseram nada. Quando chegou o irmão e viu como batiam no pai, deu o endereço. Rodearam seu domicílio. Na casa estava Normita, grávida de 8 meses, com o outro irmão e o companheiro. Uma versão, dos Montoneros, diz que ela saiu na rua com duas granadas. Tratou de abrir caminho com uma, que não explodiu. Usou a outra para não se entregar nem entregar seu filho vivo. Outra versão, entretanto, diz que encontraram seu cadáver, as mãos amarradas com arame e com sinais de tortura.

-Alba, pelo menos, deve estar bem.

-Não, se engana. Alba está morta.

-Encontrei com ela na estação de trem em maio.

-Nessa época ela estava sequestrada.

-Mas eu a vi, com um companheiro, muito bem vestida – tratei de recordar a roupa, a situação…- iam de braços dados.

-Sim, dizem que a usavam para identificar o pessoal. Entregou muitos. Depois a mataram. Miriam contou que foi em junho.

Tratei de lembrar da imagem… não iam de braços dados, o rapaz agarrava seu braço. O gesto de desprezo quando nos cruzamos foi para que não me ocorresse cumprimentá-la, ou sorri-lhe, ou olhá-la.

artigo de Silvia Beatriz Adoue, argentina, professora da Escola Nacional Florestan Fernandes e da Unesp de Araraquara.

Fonte: Carta Maior – (*) Publicado originalmente em Marcha.org