Maurizio Musolino: O que está acontecendo na Síria

Não é fácil contar o que está acontecendo na Síria, mesmo tendo estado lá pessoalmente, como ocorreu comigo há alguns dias. Assim como é difícil prognosticar o que ocorrerá nas próximas semanas, mais ainda é responder à pergunta mais frequente no momento: como terminará?

Por Maurizio Musolino*, em Marx 21

Uma coisa, porém, é fácil dizer, mais uma vez – como no Iraque, primeiramente, e depois na Líbia, há poucos meses – estamos assistindo, aliás sofrendo, uma verdadeira operação de desinformação e manipulação midiática. Mais uma vez a mídia se torna um instrumento de guerra, a serviço dos estados maiores que através dela justificam bombardeios e ocupações junto à opinião pública.

Chegando a Damasco, via Amã, na Jordânia (a outra alternativa é o Cairo), visto que os aeroportos europeus fecharam as suas escalas aos voos diretos à Síria, somos subitamente atingidos por uma atmosfera abafada. O vozerio caótico que sempre caracteriza as estradas, praças e mercados de Damasco parece ter desaparecido, dando lugar a um clima nervoso e preocupado.

Mas não há nenhum sinal de tanques armados, unidades de guerra e toques de recolher. Nenhum traço do exército em Damasco. No entanto, eu tinha partido de Roma levando na cabeça horas e horas de noticiários sobre bombardeios e militarização do território. Na realidade, ao menos Damasco é bem diferente. Encontro uma cidade certamente preocupada, mas com muita vontade de viver e de reagir. Uma cidade cheia de desejo de normalidade.

O primeiro pensamento é o de estar enganado, seguramente os boletins de guerra que na Itália falavam de bombardeios, explosões e ações militares não se referiam a Damasco. Se fosse necessário, eu teria a confirmação disso ao retornar à Itália quando vi o programa “Rainews” mostrando um noticiário sobre Damasco “debaixo de bombas”. Claro que a situação atual não é de normalidade. O medo prevalece, as cidades estão privadas do turismo e algumas regiões são dificilmente controladas pelo exército regular, tanto que para viajar de Latakia a Damasco fui obrigado a ir de avião em vez de percorrer os cerca de 250 quilômetros que separam as duas cidades, mas era “muito perigoso passar nas proximidades da periferia de Homs”, diziam-me. Em suma, Damasco não é toda a Síria, mesmo que as notícias reconfortantes cheguem também de Aleppo, Tartus e Latakia, cidades que juntas perfazem mais da metade da população da Síria.

Contudo, durante os dias em que estive na capital da Síria, se havia bombas, não eram lançadas nem pelo exército nem pela polícia fiel a Bashar Al Assad. Os responsáveis por isso, ao contrário, são os próprios campeões da democracia, assim tem sido reportado pelos nossos próprios jornais que se opõem ao atual governo. Uma verdadeira estratégia do terror, que gera medo e incerteza, e que segundo os planos destes “revoltosos” em breve porão de joelhos o partido Baath e seu sistema de poder. Até o momento, porém, o que conseguiram paradoxalmente foi pôr em crise o próprio setor da oposição que de boa fé reivindicava reformas e democracia. Muitos dos defensores das reformas, mesmo radicais, hoje temem a deriva “islâmica” da revolta e preferem refluir no pessimismo e observar a evolução da crise à distância.

Mas o que mais dá medo é sobretudo a crescente presença de cidadãos estrangeiros chegados à Síria para combater pela “democracia”. São o coração do Exército Sírio de Libertação . Um tipo de milícia mercenária internacional, com uma forte conotação islâmica, que há anos está a serviço de poderes fortes e de interesses consolidados, desde que dispostos a pôr sobre a mesa um considerável botim. Uma milícia que nasce e se consolida no Afeganistão dos anos 1980, promovida pelos serviços secretos estadunidenses com o objetivo de alimentar a contraposição ao bloco soviético, para depois de anos se transferir primeiramente para os Bálcãs, depois – como elemento de desestabilização do governo de Saddam Hussein – no Iraque, e finalmente na Líbia e na Síria. Uma milícia que às vezes assume nomes e definições diversas, Al Qaida, jihadistas, salafistas … , mas que, em substância, conserva características próprias e imutáveis segundo o teatro do conflito e os interesses que a movem e pagam. Um exército não ideológico, que sob a aparente cobertura do Islã esconde uma extrema falta de escrúpulos.

Sobre esta milícia o mundo ocidental deveria fazer alguns raciocínios e reflexões. Especialmente depois do que aconteceu nos Estados Unidos em setembro de 2001. Quem pode garantir que depois de ter usado estes mercenários para realizar o trabalho sujo em várias partes do mundo não os encontraremos dentro de nossos próprios países como forte elemento de desestabilização? Nesse sentido, a crise econômica que nos próximos anos fará pesadamente sentir as repercussões dramáticas das políticas neoliberais e capitalistas pode se tornar um caldo de cultura terrorista perigosíssimo para a nossa democracia e conivente com aqueles setores financeiros que invocam poderes fortes à altura da tarefa de impor um dolorosíssimo expurgo às classes mais pobres da Europa. Um simples bom senso deveria levar a isolar e combater estes elementos em vez de exaltá-los e reforçá-los como está acontecendo nestas semanas na Síria.

Com esta premissa, é claro que a partida que está sendo jogada em torno de Damasco é bem mais ampla quanto ao futuro da Síria. Portanto, é extremamente difícil fazer prognósticos , mas uma coisa se pode hoje dizer: o Estado ainda é forte. Isto pode ser compreendido a partir de muitas coisas, desde a organização interna nos aeroportos até a presença de guardas nos cruzamentos e ruas – como sempre distraídos e indiferentes – , passando pelas escolas, universidades, correios, hospitais… Em resumo, todos os serviços que fazem um “Estado”. Nada que se pareça ao que nas primeiras semanas de revolta acontecia na Tunísia, no Egito, e na Líbia. Aliás, são os próprios dirigentes comunistas a sublinhar que “nenhum embaixador abandonou o posto ou se passou para o lado dos rebeldes”. Uma verdade que no entanto esconde também uma outra face posta em relevo desta vez pelos setores da oposição: a característica confessional da atual classe dirigente síria. Uma ligação mais forte do que qualquer outra coisa.

Os alauitas certamente sabem que se Assad caísse viriam dias difíceis para eles, mas esta convicção é também a de muitas igrejas cristãs-ortodoxas presentes na Síria. A sombra de uma repetição do que aconteceu no Iraque aterroriza a igreja cristã e o demonstra a própria palavra do patriarca Hazieem recordando a história de São Paulo na estrada de Damasco, sublinhando o fato de que se enraizaram a religião islâmica e a cristã e que todas as religiões nas suas várias subdivisões aqui conviveram durante séculos e séculos. Uma paz que existiu na comunidade alauita, precisamente porque minoria, um elemento de importante mediação e estabilização. O patriarca conta como este ano “na Páscoa os muçulmanos vieram rezar conosco, fazem isto todo ano, mas desta vez eram muitos, em sinal de solidariedade e paz”.

Em favor do diálogo e da paz entre diversas confissões se expressou também o grande Mufti da mesquita Oumaiada de Damasco, Ahmad B. Hassoun, falando contra a “ingerência externa que fabrica a guerra em vez de trabalhar pela reconciliação entre todas as partes. Há pessoas que matam por dinheiro, financiados do exterior. São armadas e recebem muitos dólares”.

Nenhuma defesa de ofício do regime, que segundo o religioso sunita “muda de modo pacífco, não com o assassinato de tantas pessoas em troca de dinheiro”. Para o Muftì “quem hoje mata em nome de Alá faz uso político da religião que não se justifica em absoluto. Vemos isso na Arábia Saudita, no Afeganistão, em tantos lugares”. Estas palavras foram ditas com lágrimas nos olhos pela dor e raiva: seu filho foi assassinado, fora da universidade de Latakia, culpado por recusar o confronto entre confissões religiosas que alguns queriam impor ao país.

Mas quem teme uma oposição caracterizada como agente do Catar é sobretudo aquela parte da sociedade síria que nestes anos se caracterizou por sua laicidade. Nesse sentido é emblemático o olhar que se recebe entrando na universidade pública de Damasco. As ruas estão cheias de estudantes, rapazes e moças que caminham, estudam, falam e convivem socialmente. Parece uma universidade como outra qualquer do mundo se não fosse pela curiosidade que leva em breve dezenas de estudantes em torno da delegação do Conselho Mundial da Paz (do qual faço parte). Querem falar conosco: dizem que não querem guerra e terrorismo, que querem decidir autonomamente sobre seu futuro e atacam a ingerência estrangeira e sobretudo o que o Catar, a Arábia Saudita e a Turquia estão tentando fazer. Não defendem Assad, aliás pedem maior coragem e reformas mais incisivas.

Sob ataque estão também os meios de informação árabes, entre eles Al Arabya e Al Jazeera, ontem campeões da liberdade, hoje instrumento de manipulação e de uso bélico da informação. A primeira é da Arábia Saudita, a segunda do Catar. E sobre um muro de Damasco se lê uma frase escrita há pouco em que a emissora do Catar é chamada de prostituta. Também isto é um pedaço do conflito que envolve a Síria.

Mas voltemos aos chamados rebeldes. Quem são? Nas primeiras semanas o descontentamento tinha uma certa conotação de massa, isto graças à soma de três elementos, “um efeito em cadeia” da chamada primavera árabe, uma crise econômica que fazia sentir as próprias consequências causando desemprego e que se somava a dois anos de seca que tinha posto a agricultura de joelhos e enfim um legítimo cansaço com um partido que governa o país há mais de quarenta anos. Naquela fase, como frequentemente ocorre com os governos no poder há muitos anos, o executivo sírio pecou por presunção e ficou surpreso pela presença nas praças de uma oposição difusa. As primeiras reações são despropositadas e revelam dificuldade de compreender realmente o que está acontecendo. Ocorrem verdadeiros atos de violência por parte da polícia, condenada depois pelas próprias forças que apoiam a Frente Patriótica Nacional. Nas primeiras filas da crítica estão inclusive os dois partidos comunistas. [Integram a Frente Patriótica Nacional o Partido Baath, do presidente Assad e demais partidos que apoiam o regime, inclusive dois partidos comunistas – N.doT].

O paradoxo está, porém, no fato de que quando Assad condena os excessos da polícia e começa a abrir-se às reformas, a oposição se transforma, muda radicalmente de pele, e substitui as legítimas exigências de democracia e pão pelo objetivo geopolítico de mudança de campo do País. Em pouquíssimas semanas a oposição que enchia as praças é substituída por algo bem diferente, o terrorismo, que tem por fim último o velho projeto do Pentágono de desembaraçar-se de qualquer modo de um dos pouquíssimos Estados nacionais que se mantiveram íntegros e não aliados aos seus desejos. Uma evolução que não é nova e tem caracterizado nestes meses grande parte das revoltas árabes.

Para compreender o que está acontecendo pode ser útil recordar uma cena de um filme sempre atual: “O Poderoso Chefão”. No filme de Francis Ford Coppola, em certo momento se vê uma reunião de “família” em torno da mesa de almoço do “chefão”, Don Vito Corleone. Naquela ocasião o chefão fala da iminente eleição pela renovação da presidência da República estadunidense dizendo: “vença quem vencer, o vencedor deve ser ligado a nós”. A máfia não podia perder e assim os poderes que giram em torno da Casa Branca não podem permitir-se ver escapar a hegemonia de dezenas de anos no Oriente Médio. Custe o que custar. É nesta ótica que se deve ler a mudança de rota da administração Obama, que embora defendendo os mesmos interesses de seu predecessor, decide pôr fim à cruzada contra o Islã para iniciar uma estreitíssima colaboração com uma parte do Islã político sunita que ideologicamente tem como referência a Irmandade Muçulmana. Uma corrente sempre tão extremada e intransigente no querer aplicar os preceitos corânicos, quanto compatível e boa aliada dos componentes anglo-saxões do liberalismo de mercado.

Há um elemento que não parece preocupar tanto os sírios, ou seja, os efeitos do boicote pretendido por Obama são hoje estreitíssimos. Muitos me recordam que a Síria é vítima de cerca de uma década de um embargo tão ilegal quanto agressivo. Uma situação que desenvolveu anticorpos e uma economia capaz de resistir com o modello da experiência cubana.

Se a realidade moderna é esta, bem mais complicado é buscar definir como poder sair do funil de violência e desestabilização que caracteriza esta fase. Seguramente, as reformas representam um primeiro passo importante, embora insuficiente. Nesse sentido, a reforma eleitoral pode ser um primeiro ensaio sobre a real vontade reformista de Bashar Al Assad. Entre as novas listas admitidas na batalha eleitoral para a renovação do Parlamento muitos são próximos ao partido Baath, mas nem todos, e mesmo assim em seu conjunto é inegável o aspecto dialético que inserem na vida política síria. Um aspecto que salta aos olhos quando se caminha pelas ruas de Damasco, assim como de Latakia ou Alepo, evidente nos panfletos da campanha eleitoral deste e daquele candidato. Muitos e também as candidatas mulheres, que se apresentam em seus panfletos eleitorais com fotografias sem véus e com um look decididamente liberal. Este também é um modo de sublinhar o aspecto de abertura, mesmo nos trajes e hábitos, presentes na sociedade síria.

Mas os sírios não se iludem, sabem que a crise não poderá terminar em pouco tempo e que a sua autodeterminação só poderá prevalecer se puderem contar com o apoio indireto dos Brics, os únicos países hoje a fazer contrapeso aos Estados Unidos, que já fizeram ouvir a sua voz bloqueando resoluções nas Nações Unidas que teriam tido o efeito de reproduzir tudo o que aconteceu na Líbia.

*Maurizio Musolino é jornalista, especialista em Oriente Médio. Integrou a delegação do Conselho Mundial da paz que fez uma visita de observação na Síria de 21 a 26 de abril.

Publicado originalmente em www.marx21.it

Traduzido do italiano por José Reinaldo Carvalho, editor do Vermelho