A Comissão da Verdade e os ofendidos
A vontade que se tem é a de escrever: por baixo de ondas de infâmia e sangue, a presidenta Dilma instalou a Comissão da Verdade. E temos essa vontade porque a vemos em um mar que se abre, pronto a tragá-la e a envolver também os brasileiros mutilados, perseguidos e assassinados sob a ditadura de 1964.
Por Urariano Mota
Publicado 18/05/2012 13:32

Mas esse mar, essa conjuração de elementos, que outra coisa não é a não ser a secular opressão sobre o povo, nos acode também pela memória da tragédia humana ocorrida a partir do golpe.
Não há espaço nesta coluna, não há espaço em mil colunas para falar de Ivanovitch, de Eremias Delizoicov, de Soledad Barrett, de Jarbas Marques, de jovens mortos, de jovens enlouquecidos, de jovens heróicos, de dramas de consciência que sobrevivem em peles que são uma fantasia de macabro carnaval. Não há nem mesmo espaço para cantar, como um poeta magnífico faria, a coragem de dona Elzita, mãe de Fernando Santa Cruz, nesta carta de 1975 para Armando Falcão, mais conhecido pelo codinome de Ministro da Justiça:
O leitor desculpe o tom solene desta coluna. É que a solenidade vem do entre aspas desses destinos. Mas num esforço, se descemos o nível do assalto da altura dessa história oculta, se descermos aos dados objetivos e técnicos da informação, devemos dizer que as estatísticas oficiais muito se enganam, quando contabilizam entre 400 e 500 militantes mortos pelos militares, ou, num esforço cínico, desaparecidos. As estatísticas nada falam dos homens e mulheres sem cidadania, mas que a buscavam até para comer, como os camponeses do Nordeste. Em Pernambuco, por exemplo, houve um quase genocídio de homens do campo, e deles quase nada se diz. Assim como eles, todos os trabalhadores, que não estavam filiados a partidos clandestinos, estão sem registro de suas execuções.
As estatísticas nada falam tampouco, e dessa omissão se valem os militares, quando ironizam a quantidade de anistiados em comparação com os livros sobre vítimas da ditadura, as estatísticas silenciam sobre o clima de terror e perseguição que fez brasileiros interromperem seus cursos, empregos e pesquisa. Se os registros dessa caça aos democratas contarem, aparecerão mais que centenas, milhares. E se se contabiliza o dano a toda uma geração, pela queda vertical da qualidade do ensino, do avanço do pensamento social, que em 64 virou coisa de comunista, como se os comunistas não fossem uma instância legítima de ser, então os atingidos são milhões na ditadura.
Na presidenta que ontem instalou a Comissão da Verdade reside o conflito do sonho socialista da juventude e o presente possível, de acordos políticos no limite do suportável, de uma democracia conservadora. Dilma bem sabe o que é mais insuportável, como nesta entrevista a Luiz Maklouf em 2003:
Os jornais hoje dizem que a presidenta ontem chorou. E informam essa emoção em nova forma de dizer sem nada dizer, porque nada falam do terror, do poder absoluto sobre vidas e pensamento de pessoas em um tempo que não está morto.
Lá em cima, escrevi que a presidenta Dilma estava sob as ondas de um mar aberto. Mas na verdade, devemos dizer: ela está no furacão. Ainda que em fenômeno diverso, ela está na tempestade. E desta vez, com um apoio mais amplo que naquele tempo, maldito tempo, do sofrimento em silêncio. Aquele que a fazia escolher entre voltar à tortura ou pular para ser mais volumosa a sua hemorragia.