Violência doméstica: iniciativas devem contribuir com políticas

A pesquisa Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, da Fundação Perseu Abramo, estima que em 42,5% dos casos de estupro os agressores são antigos ou atuais namorados e cônjuges das vítimas. Para reverter os números, alguns projetos vem sendo desenvolvidos por organizações sociais. Iniciativas isoladas como essa podem servir de laboratório social para implementação de políticas públicas. As redes de atendimento devem estar atreladas a uma política de governo.


Prof. Sergio Barbosa ensina machões a se 'comportar' / foto: Agência Estado

O professor de Sociologia e Filosofia, Sergio Barbosa, de 45 anos, é coordenador do primeiro grupo de SP feito para mudar o comportamento de homens agressores. Todas as segundas-feiras, um grupo de aproximadamente dez homens se reúne em um sobrado de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. Com profissões e escolaridade distintas, eles têm em comum um histórico de agressões físicas e psicológicas contra mulheres.

Há 20 anos atuando com pela igualdade de gênero, depois de muitas andanças pelo Brasil, Sergio se estabeleceu em São Paulo. Desde 2006, é voluntário do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, organização não governamental que pegou um caminho alternativo para tentar cortar o ciclo da violência contra a mulher: o de reeducar os homens.

Caminho no qual a Justiça também acredita. Desde 2010, a Vara Central da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Paulo, na Barra Funda, zona oeste, direciona os homens agressores para a ONG. Eles chegam bravos, odiando a ideia de estar em um grupo de homens organizado em um coletivo feminista, diz Barbosa.

Sou amasiado e estou aqui por brigas antigas. A juíza me condenou a participar, diz um motorista de 35 anos, integrante do grupo. No início, eles se sentem injustiçados. Acham que não fizeram nada de mais, explica Barbosa, que com o resto da equipe faz uma série de atividades para desconstruir a figura do machão controlador.

Tentamos mostrar que para ser homem não é necessário bancar o durão violento. Ajudar na educação dos filhos e mesmo nas tarefas do lar não afeta a masculinidade, diz Leandro Feitosa Andrade, de 52 anos, professor de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), outro voluntário do Coletivo que trabalha com Barbosa na reeducação dos homens.

Todos os orientadores são homens. No caso de Barbosa, ele parece ter sido escolhido a dedo. Antes de se formar em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, trabalhou no garimpo em Xambioá, município do estado do Tocantins. Homem de traços rústicos, provoca empatia imediata nos integrantes do grupo, conhece a realidade desse público, e não se choca à toa.

Meu pai queria que fizesse ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Eu até passei no exame, mas ansiava por outra vida. Fui ganhar dinheiro no garimpo. Aos 20 anos veio para São Paulo, entrou na PUC, e engatou numa ação comunitária com prostitutas, garotos de programas e travestis na zona leste da cidade. Daí para o trabalho pela igualdade de gênero foi um pulo.

Ao todo, são 16 encontros semanais. No início, os homens se apresentam e contam suas histórias. Os motivos para a violência são quase sempre os mesmos: sentimento de posse, ciúmes, educação dos filhos e machismo. Acham que só eles podem fazer determinadas coisas, como trabalhar e não cuidar das tarefas domésticas ou sair com os amigos para uma noitada. Quando são desafiados, partem para agressão, diz Barbosa, que entende bem sobre negociações em família. Casado com uma médica infectologista, é pai de três filhos – Juliana, de 15 anos, Lucas, de 14 anos, e Sarah, de 4 anos.

Nenhum agressor aceita ser colocado em xeque, independentemente do grau de escolaridade. No grupo, muitos frequentadores têm curso superior e acreditam que são representantes da honra e do poder. Um comportamento que, segundo ele, se repete em outros ambientes como nas universidades. Há muitos casos de mulheres que foram drogadas porque os parceiros queriam sexo e elas, não. O estupro não é denunciado. Barbosa dá aula de Filosofia e Sociologia nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU), na Liberdade, centro de São Paulo.

Para mudar tantos preconceitos, vale tudo: psicodrama, palestras e atividades paralelas. Dizer que a cada 15 segundos uma mulher é agredida não sensibiliza o homem. É preciso chamá-lo para a responsabilidade. No grupo, o depoimento de agressores com passagem pela prisão tem efeito moral sobre os demais. "Fiquei 115 dias preso. Lá dentro é cruel, principalmente para a gente, que não é bandido, que é trabalhador. Se puder evitar…", diz um jovem do grupo, de 19 anos.

Noções de direitos humanos e da Lei Maria da Penha também fazem parte do programa. A ideia é acabar com o sentimento de impunidade. Questões de saúde sexual, como a importância do uso da camisinha, também são abordadas. Tem homem que acha que mulher que carrega camisinha na bolsa é vagabunda, afirma Barbosa.

Academia de Polícia

Alguns alunos frequentam também o curso da Academia de Polícia de São Paulo, batizado de Projeto de Reeducação Familiar, constituído de seis encontros mensais com palestras. O projeto é fruto de um Termo de Cooperação entre a Secretaria da Segurança Pública, a Polícia Civil, a Academia de Polícia, a Secretaria de Justiça e Defesa da Cidadania e o Ministério Público Estadual, explica a juíza Elaine Cristina Monteiro Cavalcante, da Vara Central da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Paulo.

Trata-se de um curso mais recente do que o do Coletivo, porém com uma infraestrutura maior, com profissionais contratados – na ONG, o trabalho é voluntário. O critério de encaminhamento aos dois projetos é, basicamente, a conveniência de dias e horários. A frequência não pode atrapalhar o emprego de cada agressor, explica Elaine.

De cada cem agressores que passam pelo Coletivo, segundo Barbosa, apenas dois reincidiram. A Justiça quer aumentar o número de cursos, porque a demanda de alunos deve crescer. Em dezembro de 2010, foram criadas na cidade mais seis varas especializadas na Lei Maria da Penha. Só em abril, 60 homens são esperados para uma mega-audiência na Barra Funda.

Números
: mais do mesmo…Algo precisa ser feito!

A base do levantamento foram dados coletados no Sistema Único de Saúde (SUS), considerando mulheres entre 20 e 49 anos, a taxa chega a 65%. Muitos casos, porém, não chegam ao conhecimento do SUS. Principalmente os de violência psicológica e moral. Os dados demonstram o agravamento de situações que começam no cotidiano. A dependência emocional, financeira ou social, somada a impunidade e a não aplicação da legislação (Lei Maria da Penha) mantém as vítimas caladas e, posteriormente, leva muitas mulheres ao extremo da violência doméstica: sua morte.

Segundo o Mapa da Violência 2012, nos últimos 30 anos, a taxa de homicídios de mulheres no Brasil praticamente dobrou – de 2,3 para 4,4 casos a cada 100 mil mulheres. Esse aumento coloca o país em 7º lugar numa lista que compara essa taxa entre 84 países.

Diversos estudos comprovam que o feminicídio (fenômeno social onde há comprovadamente homicídios de mulheres) está diretamente relacionado a estrutura machista e patriarcal na cultura brasileira, que acaba por legitimar as relações desiguais de poder. Para combater a violência e reduzir os crimes é preciso que ocorra a aplicação da lei desde o momento em que ela faz a denúncia, na delegacia da mulher, onde muitas vezes e novamente vítima de agressões verbais, até as casas-abrigo ou de passagem, que acolhem casos mais graves, de ameaças de morte. Na delegacia, por exemplo, é preciso importante a orientação de que não basta ficar somente no boletim de ocorrência, é preciso entrar com uma representação criminal. Nas casas-abrigo, não basta acolher alguns meses sem que haja uma contribuição com a formação profissional, psicológica dela e de seus filhos, para que passa reconstruir sua vida, autoestima, com autonomia.

Para a pesquisadora Thandara Santos, militante da Marcha Mundial das Mulheres, apesar da maior divulgação dos casos de violência contra a mulher, a não aplicação da Lei Maria da Penha pode trazer graves consequências.

“O aumento das denúncias, sem o respaldo na proteção do Estado, constrói terreno ainda mais perigoso às mulheres vítimas de violência doméstica, porque as coloca debaixo do mesmo teto do agressor, já ciente da denúncia e das possíveis punições legais”, argumenta Thandara.

A falta de padronização no atendimento dos profissionais que atuam na rede de acolhimento foi criticada por pesquisadoras da área, em abril, durante uma audiência da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investiga a violência contra a mulher.

Segundo Thandara Santos, “o principal resultado que podemos esperar dessa CPMI é a constatação fundamentada de que a rede de proteção prevista pela Lei Maria da Penha não está sendo efetivada na maior parte dos estados, o que coloca as mulheres vítimas em perigo constante”.

A votação desse relatório da CPMI, inicialmente prevista para 7 de agosto, aniversário da Lei Maria da Penha, ainda não tem data marcada. A justificativa para o prorrogamento do prazo é de maior aprofundamento das investigações. Esperemos todos e todas que daí saia propostas concretas que resultem em políticas de governo.

Da redação com informações do Brasil de Fato e O Estado de S. Paulo