Encontro debate Guerrilha do Araguaia e Comissão da Verdade
O Teatro Celina Queiroz, foi o palco na noite desta quinta-feira (24) para o lançamento da 2ª edição do livro “Guerrilha do Araguaia – a esquerda em armas”, do historiador e professor da Universidade Federal de Goiás, Romualdo Pessoa Campos Filho. Durante o evento, fruto da parceria entre o Centro Acadêmico Pontes de Miranda (Direito – Unifor) com a Fundação Maurício Grabois e a Associação Anistia 64-68, também foi realizado um debate sobre a Comissão da Verdade.
Publicado 25/05/2012 12:37 | Editado 04/03/2020 16:29
Romualdo iniciou sua intervenção contextualizando a iniciativa de se dedicar ao tema sobre a resistência armada liderada por comunistas contra a Ditadura Militar. “Este assunto por muito tempo foi jogado para baixo do tapete. A história pode ser negada por certo tempo, mas não definitivamente. Decidi estudar a Guerrilha do Araguaia e, com minha contribuição, identificar questões vividas em certo período da vida do país para que esses acontecimentos não se repitam novamente. Precisamos tornar nosso passado verdadeiramente a limpo”, defendeu.
Sobre a pesquisa
Romualdo era ainda universitário do curso de História da Universidade Federal de Goiás quando teve acesso às primeiras informações sobre o tema. “Este foi um assunto por muito tempo negado. Não existia qualquer referência documental ao fato histórico realizado no sul de Goiás (hoje Tocantins). Naquela época iniciavam-se a luta dos familiares que procuravam os corpos dos guerrilheiros desaparecidos”.
Segundo o professor, a curiosidade se acendeu ainda mais no movimento estudantil, quando ele participava de um Congresso da UNE. “As bancadas de Goiás, durante os congressos, costumavam entoar palavras de ordem referentes ao assunto: ‘Tarda mas não falha, aqui está presente a juventude do Araguaia’. Segui este sentimento de resgate de heroísmo e coragem”.
Inicialmente, o objeto de estudo para o Mestrado estaria voltado para outro episódio que marcou a história do Brasil: Antônio Conselheiro e a epopeia de Canudos. “Com as pesquisas iniciais constatei que já tinha muita publicada coisa sobre o assunto. Considerei que seria mais importante me debruçar sobre a história que pouco se falava e voltei meus estudos para a Guerrilha do Araguaia”.
Na época, ressalta Romualdo, eram escassos os materiais que falavam sobre o tema. “Apenas reportagens em jornais locais e uma publicação do PCdoB, partido que organizou a guerrilha, com relatórios de Ângelo Arroio, um de seus líderes. Fazer um trabalho acadêmico sobre o assunto iria inserir a guerrilha no lugar de destaque onde ela merecia”, ressaltou. “A Guerrilha do Araguaia é o capítulo das lutas populares do país de maior movimento de tropas militares desde a 2ª Guerra Mundial. No Brasil, só comparada ao movimento liderado por Antonio Conselheiro”, exemplificou.
A justificativa para abordar o tema em seu trabalho acadêmico parecia forte. “Como um movimento que contava com pouco mais de 100 militantes envolvidos demorou 3 anos pra ser debelado? Contando com o planejamento e a preparação, somaram-se 13 anos. A história precisava registrar este fato”, defendeu.
Ao longo do tempo dedicado à pesquisa, o professor Romualdo encontrou vários desafios. O primeiro deles ideológico. “Como lidar com a verdade de um fato sendo militante do partido que tinha organizado a guerrilha?”, questionou. Na nova edição do livro que surgiu como fruto do trabalho de Mestrado, ratifica o professor, ele aprofunda o tema da verdade. “Cada um que participou (camponeses, guerrilheiros, militares), tem uma história pra contar. Cabe aos historiadores ser o mais isento possível. Acho que consegui, pois meu livro tornou-ser referência para todos os demais que surgiram depois”, avaliou.
Em sua primeira visita à região, em 1992, o autor deparou-se com outro tipo de desafio. “Naquela época não tinham documentos como têm hoje. Meu trabalho foi forçosamente baseado em fontes orais. Minha preocupação era colher depoimentos e dar voz aos camponeses, mas era grande a dificuldade porque muitos deles ainda temiam represálias. Quando conversavam informalmente, contavam o que tinha acontecido, mas com o gravador mudavam o foco e não davam informações. Diferente de um trabalho jornalístico, o acadêmico tinha que ter a comprovação do material colhido”, recordou.
Outro desafio destacado por Romualdo retoma a questão teórica. “Enquanto professor e historiador defendo evitar os anacronismos, olhar uma época com os olhos de outra. Lá, analisamos as condições de vida na região, naquelas circunstâncias, na clandestinidade preparando um movimento que visava fortalecer a luta com o objetivo de derrotar a Ditadura Militar”, considerou.
A Guerrilha
O historiador ratifica que a guerrilha foi sim um movimento preparado para reagir à Ditadura, mas rebate a forma como eles foram enfrentados. “Os que reprimiram a guerrilha em nome do Estado tentam justificar as atrocidades pelo fato de os militantes terem ido pra encarar uma guerrilha. Isto é verdade, mas o grupo ainda não estava preparado no momento em que foram descobertos, foram pegos de surpresa e liquidados brutalmente. Faltavam ainda aspectos para serem preparados para deflagrar a guerrilha. Descobertos, embrenharam-se nas matas e escolheram o enfrentamento mesmo sem o armamento para o embate”, ratificou.
Apesar de inferior em termos quantitativos e bélicos, ressalta Romualdo, as escolhas dos que arriscaram suas vidas em luta pela democracia no país acabou sendo uma das poucas alternativas que restavam. “Naquele momento muitos dos militantes eram perseguidos nas cidades, tinham que mudar de nome e deixar suas famílias. Caso aparecessem, seriam presos. Caso fugissem para o exílio, corriam risco de serem perseguidos pela Operação Condor (junção de repressões militares de vários países da América Latina). A escolha foi combater”.
E com a escolha, estava a consciência que haveria, em algum momento, o enfrentamento com as tropas militares. “Isso é natural que aconteça, mas o problema a ser resgatado é a forma como foram feitas as prisões de militantes e camponeses. Eles estavam preparados para eliminar até o último dos guerrilheiros ou quem quer que fosse contra a ação militar”.
As atrocidades
O Professor Romualdo destacou ainda a ação de grupos paramilitares, que agiam à revelia da própria autoridade militar, sob o comando do Major Curió. “Vários agentes que envolveram pistoleiros iniciaram verdadeiras caçadas, aprisionaram muitos com vida e depois eram torturados e mortos. Os moradores viam as tropas passando com guerrilheiros presos e seus depoimentos comprovam isto”.
Após eliminar guerrilheiros e camponeses, a ordem era eliminar também os vestígios que comprovassem tal ato. “Em determinados lugares, muitos corpos foram enterrados. Era em propriedades rurais, perto de córregos e trilhas. Com o tempo eles retiraram os corpos e levaram provavelmente para a Serra das Andorinhas ou para o cemitério de Xambioá, cemitério que foge dos padrões, caótico, sem administração. O processo de busca e identificação de corpos nesses lugares é como procurar uma agulha no palheiro”, comparou. Romualdo destacou ainda que em todos esses anos de expedições e procura de corpos de vítimas da Guerrilha do Araguaia, apenas dois foram identificados: da paulista Maria Lucia Petit e do cearense Bergson Gurjão Farias.
Comissão da Verdade
O Professor Romualdo enaltece a criação da Comissão da Verdade, mas considera que ela irá enfrentar muitos percalços. “Temos que enxergar que agora estamos em momento diferente apesar de as condições serem extremamente favoráveis. A Anistia, por exemplo, não foi uma concessão mas fruto da luta do povo. Temos que continuar defendendo os direitos das famílias para garantir o trabalho da comissão”, defende.
O historiador ressalta a importância da Comissão da Verdade. “Assim como a Comissão da Anistia, que extrapolou suas limitações indo além, garantindo reparações e indenizações, acreditamos que na medida em que a Comissão da Verdade avance em seus trabalhos, ela também irá se debruçar sobre documentos que ainda não tenham aparecido, descobrirá novas histórias e a possibilidade de novas leis através do aparato judiciário que garantam que todo este fato será passado verdadeiramente a limpo”.
Gustavo Tavares Liberato, Professor de Direito Constitucional também participou do debate. Segundo ele, a Comissão da Verdade e sua legislação não têm caráter punitivo, mas garantem a proposição de efetivar o direito à memória. “Ela será um grande instrumento que facilitará a reconciliação nacional e poderá permitir a superação deste fato histórico. A Comissão da Verdade não vai fechar a chaga das famílias, nem a falta que fizeram e fazem seus entes desaparecidos. Ela não vai apagar as ações do Estado brasileiro, mas possibilitará de forma democrática, republicana e constitucional superar este período da nossa história”.
Hélio Leitão, ex-presidente da OAB-CE, destaca que a Comissão da Verdade brasileira é a 40ª a ser criada no mundo. “Ela não é uma novidade, mas traz consigo a experiência de justiça, de resgate da história e permite que as vítimas e familiares tenham direito à verdade e recebam uma satisfação do poder público. A comissão, porém, deve ir além e tratar de algo que nem sempre é abordado: o momento de distorção das finalidades do Estado brasileiro”, ratificou.
O advogado ressaltou ainda que este momento seja também de afirmação dos Direitos Humanos. “Temos que garantir o comprometimento com as nobres finalidades do Estado e do Direito para recuperar sua supremacia moral e rever as instituições herdadas no período da Ditadura. A tortura continua sendo uma rotina nos meios de investigação, junto com a violência, a truculência e humilhação. Parece que a sociedade perdeu a sensibilidade em relação a esta realidade. Direitos Humanos tornou-se, no censo comum, sinônimo de defesa de bandido e nós sabemos que este tema vai muito além. Com a instalação da Comissão da Verdade, muitas verdades dolorosas vão aflorar, mas também é o momento para este tipo de reflexão”.
Presidente da Comissão Especial de Anistia, o deputado federal Chico Lopes (PCdoB) também esteve presente no debate e defendeu a Comissão da Verdade. “Apesar da demora de sua instalação, sua implantação é fundamental. Mesmo sem revanchismo, precisamos esclarecer o que houve naqueles duros anos. O enfrentamento houve, mas ninguém foi pra clandestinidade por opção. Chegamos num ponto que não tinha condições de convivência. Não fomos nós que botamos os militares na clandestinidade, mas suas práticas de torturas eram feitas desta forma, às escondidas. Chegou a hora de revelá-las”.
O parlamentar considera que não será fácil enfrentar novamente os militares, desta vez de forma legal. “Daí surge o papel importante da Comissão da Verdade, que tem a obrigação de rever assassinatos e torturadores. Apesar do período curto que ela terá, apenas 2 anos para esclarecer tantos atos obscuros, a comissão terá o principal papel de apresentar ao povo brasileiro sua verdadeira história. É preciso que os jovens tenham conhecimento e continuem nossa luta por mais democracia e liberdade. A eleição de um operário nordestino e de uma mulher para a Presidência da República é fruto das conquistas alcançadas por aqueles que deram a vida em nome de um Brasil mais justo. É nosso dever alertar o povo através de sua história e a Comissão da Verdade será este instrumento”, defendeu.
De Fortaleza,
Carolina Campos