A grandeza de Coutinho e a lógica da superficialidade no Estadão

Pensador da Cultura Brasileira, Fernando Szegeri reflete sobre artigo publicado em O Estado de São Paulo retratando o craque Coutinho, do Santos dos anos 60, e afirma que “a auto sabotagem” citada no artigo do jornalão é percepção rasa e superficial

Fernando Szegeri - acervo Inimigos do Batente

Sempre tive grande empatia com a figura de Coutinho, o grande centro-avante santista dos anos 60. Causaram-me desde cedo admiração as obras-primas por muitas vezes reprisadas ao longo de minha infância setentista, tanto quanto, depois, as históriaas ouvidas em tantas mesas de bar em companhia do grande Dorval, com quem formara junto com Mengálvio, Pelé e Pepe, a mais célebre linha de ataque do futebol brasileiro. Vibrei ao deparar a chamada no Estadão on line para o que eu achava fosse uma merecida homenagem, ainda que tardia, em tempos de tantos confetes para as coisas do Alvi-negro Praiano. Mas o entusiasmo logo cedeu à decepção.

O texto é tímido, pra dizer o mínimo. O repórter consegue vislumbrar a fidalguia, a altivez de uma figura que não se deixa seduzir pela glória fácil e efêmera das páginas de revistas, programas televisivos e coquetéis "bem freqüentados". Mas não resiste à tentação de classificar sua atitude como "auto sabotagem". Isso porque, a despeito da admiração evidente ali expressada, não se liberta dessa lógica pequena que mede o mundo pela óptica dominante, e a grandeza de um personagem pelo reconhecimento "da mídia". Ficar fora das badalações e (consequentemente) da mídia é ficar “fora da história". Consigna que as recusas do craque não são movidas pelo interesse meramente "financeiro", mas, antes, "pela justiça", sem conseguir perceber a significação sutil, mas absolutamente fundamental, desse fato; do que em outras palavras o craque parece nos querer dizer: "não me interessa participar desse mundinho da espetaculização fácil, onde todo mundo está atrás do seus 15 minutos de fama, mas só quem se dá bem são os de sempre: os manda-chuvas, os que estão (e sempre estiveram) por cima da carne-seca". Essa é a justiça de que se fala. Que clama por Arouca, não porque não reconheça ou não goste de Neymar, mas porque não tolera a obviedade e toda a mediocridade a ela inerente. O clamor por Arouca é o clamor do homem real, da vida real, versus a pobreza do mundo fictício das construções midiáticas. Do homem que ainda prefere os seus amigos, o seu carteado, o seu barbeiro à luz efêmera dos holofotes.

Não vislumbra, ou não reconhece, que na figura soberba de um Coutinho que “fala com a gente olhando o tempo todo na cara” se encerra a realeza maiúscula própria de sua herança e de sua cultura; a realeza que “não baixa a cabeça” de Pai Balbino da Feira de Água dos Meninos, de Mestre Candeia, de Dom Obá II d'África, de Abdias do Nascimento, de Mãe Senhora do Opo Afonjá, de Mestre Besouro da Bahia. Não consegue admitir que sua postura encarna magistralmente a contradição entre um mundo presidido pela efemeridade, pela superficialidade versus a sobrevivência dos valores tradicionais dos que ainda prezam aquele "um pouco mais” da vida, de que falava o velho samba. Que o artilheiro não busca “conter a própria glória”, porque simplesmente essa não depende de consentimento, como nas licenças carnavalescas; não provém dos salamaleques interesseiros, mas antes do reconhecimento das ruas, dos concidadãos, dos amigos. Dos seus. A timidez do articulista, que naturalmente está imerso no caldo ideológico que campeia nos grandes meios de comunicação, encobre a sobrevivência dos laivos simbólicos de uma sociedade de raiz escravocrata que ainda se espanta com a altivez de um negro que não está nem aí para as migalhas que a "casa grande" está disposta a lhe dispensar pelos seus "bons serviços prestados". Seu acanhamento não lhe permite perceber, com a mesma "astúcia" que lhe faz entrever uma suposta projeção psicológica do velho craque sobre a figura de Pagão, a ululante expressão do que a mentalidade dominante (perversa, ideológica) levava aquele menino preto a imaginar de antemão, a priori: de que o melhor do time devesse ser o branco. Ou, pelo menos, que inconscientemente fosse levado a prestar mais atenção no branco – e não que o branco necessariamente tivesse jogado mais.

Por fim, e acima de tudo, parece não perceber não ser um mero detalhe que seu vivido coração vá depositar semanalmente suas dores e esperanças aos pés de Santa Josefina Bakhita. "Uma santa dos escravos"…

Fernando Szegeri é formado em Filosofia pela USP e Direito pela PUC-SP. É sambista e idealizador de inúmeras rodas de samba na cidade de São Paulo estimulando a convivência entre as diversas gerações do gênero.