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Cap. XXVIII – Um oculto lúmpen

– Biu, traz mais cadeira que a revolução vai começar!…

Debruçado na janela, Bajado gritou virando-se para dentro de casa; gritou depois que as negras ornadas de miçangas pararam na porta. No meio, o babalorixá; atrás, os capoeiras.

Pensara em não gritar, esperar para descobrir o propósito daquela gente; há muito sem sair de casa, quase os esquecera. Quando as Pretinhas do Congo, em marcha corrida nos Quatro Cantos, com bombos, flautins silenciados, surgiram, deduziu ser a tropa dos revoltosos.

Chica, no quarto de uma das filhas de dona Biu, vestia-se. A velha fechara o zíper de seu vestido, correu para a sala, Chica. Na janela, serenou Bajado.

– Não será preciso providenciar cadeiras.

Viu, reunida numa prosa farta, do outro lado da calçada, a diretoria da Troça Carnavalesca Mista Cariri; de mistura, com toda a diretoria do Homem da Meia-Noite. No centro, quase oculto, o velho baixote acaçapado na Praça do Carmo. Benza-Deus!

Maújo, Caetano e Gertrude, bebendo cervejas na mesa da cozinha, prelibando o roteiro da marcha. Dona Biu assara manjubas. Seriam comidas depois, mas…

Chica chamou todos. As filhas desceram da cozinha, trazendo o quadro, as imagens, entregues cada um a seu autor.

Teve começo a marcha em direção à rua 13 de Maio, à furna da Inquisição, outrora prisão de infiéis; guardaria, agora, um libelo.

Chica juntou-se a Bajado, dona Biu, às duas filhas. Atrás, Maújo, Caetano e Gertrude em animada conversa com diretores das duas agremiações. O mais interessado era o presidente do Homem…
Artesãos diversos, todos segurando instrumentos de uso no ofício. Chica os instruíra. As Pretinhas, atrás deles, dançando o maracatu. Os capoeiras, exibindo-se ao som do berimbau.

Quatro da tarde do sábado, biroscas servindo de abrigo a desocupados, bêbados vadios, cronistas de ladeiras e becos. Em frente ao Mercado da Ribeira, um séquito de escravos não os surpreenderia tanto. A marcha era um desfile temporão de blocos fora do corredor da folia. Não foram avisados, os bêbados; pareceu-lhes gente de elegância fanada, beleza postiça.

Virando para a 13 de Maio, a estreiteza da rua comprimiu a pouca multidão. Chica segurou Bajado pelo braço, as duas filhas seguraram dona Biu. Desceram o calçamento rumo ao museu. Dois fotógrafos os esperavam, seguindo Costa Neves. Bajado foi entrevistado, Chica foi a mais fotografada por causa da prenhez. A coincidência da barriga com a estatueta bojuda chamara a atenção. Costa Neves identificou-a. “A mulher que desafiou a moral católica…”

– Tinham que escalar o sacana… – sussurrou Maújo no ouvido de Caetano – É um prato cheio para ele. Vai espetar Chica para adular o secretário.

Maújo urdira a chegada de Chica ao lado de Bajado, como o remate de uma marcha vitoriosa sobre os desígnios do secretário; com pompa muita para mostrar a força das artes plásticas. Não tinha medo do repórter, mas reler seus textos encharcados de suspeitas, implicando Chica, Bajado…
– Por que o cancro mata dezenas numa semana e poupa Costa Neves? A vida não é justa… – desabafou – Porra! Mil vezes porra!

– Ele sabe que você é casado com Chica? – Caetano.

– Não. Se souber vai deduzir que há uma trama entre mim e Chica.

– Evite se aproximar dela.

– Posso fazer isso. Não sei se Chica vai fazer a mesma coisa.

A fachada do museu, branca, coloriu-se. A quietude sacudiu-se com o berimbau, bombos e flautins.
No fim da tarde, a Veraneio deu conta de quatro ocupantes; no calor, vestiam jaquetas grossas.

Todo o tempo sentados, sem abrir as portas do veículo, fumando.

O curador do museu agradeceu comovido, chamando Chica de novel ceramista. Um coquetel foi servido, bandejas de empadas.

Chica não quis discursar, deu a palavra a Bajado. Bajado bebericou na taça, meio sem jeito; disse:

– À memória de Bibiu… – Outro gole, esvaziou a taça, apontou para a imagem de Bibiu no quadro, nas imagens de Chiquinha.

Berimbaus, bombos, flautins chorando.

Os homens da Veraneio achando tudo sem graça, saíram.

O trajeto de volta foi o mesmo. A celebração continuaria na casa de Bajado. No Mercado da Ribeira, os bêbados acenaram; tinham ouvido os cronistas das ladeiras.

A aglomeração ficou em frente à casa de Bajado, nas calçadas paralelas. Maújo e Caetano chamaram a diretoria dos dois clubes para beber cerveja com manjubas; beberam, despossuíram-se dos restos de acanhamento. O presidente do Homem convidou-os para ser sócios. Maújo, despojado, confessou ter sido ele o autor do arremesso infeliz. Desculpou-se, ajuntando que a marcha fora o modo de desagravar Chica da reprovação do secretário. O homem encolheu-se, reduziu-se mais no pequeno tamanho; olhou os rostos, distinguiu um fundo rogo de perdão. Cada rosto com um traço do caeté desconhecido; tristeza, coragem, nostalgia difusa. Baixou a cabeça, confuso; ocultou com as mãos o choro que se precipitou. Choraram todos, Bajado também. Maújo abraçou o homem, seguido por Caetano, Gertrude, Chica.

As negras se enterneceram, soltaram lamentos, cantos africanos. O babalorixá gritou com a voz rouca: Macucoê…

Do lado de fora, as Pretinhas do Congo cantaram.

Seguiram-se discursos, falas mutiladas pela bebida.

Nenhum carro pôde passar. Turistas, na rua, observando. Mais adiante, a Bodega do Moço estrugia de bêbados; um gueto com moças cuja virgindade se extraviara nos becos. Putinhas absorvendo sem jeito o jargão do lugar, tirando proveito de moços estróinas. Gringos de olhos azuis, vagabundos do dia, da noite, descrentes da revolução social. Em troca de grana miúda, traficantes ofereciam pó, liamba. O comprimento da estreita calçada fora ocupado pelo distúrbio social inconfesso. Um ou outro portando carteirinha de esbirro oculto, sem preocupação com a bolota de fogo nos olhos do drogado; cobiçando indícios de um santuário subversivo.

No meio, tentando enxergar além da encolhida visão, Xisto, agora um oculto lúmpen. Deixara o cabelo crescer, integrara-se à rafaméia de rumo impreciso. Livrara-se do estilo marcial. Assumira a divisa -“Qualé, meu irmão!…”

Foi visto pelos ex-camaradas, por Chica. Julgaram-no um sapo no brejo. Entraram na Bodega. Chica não quis se servir; virou-se para o lado de fora, mirou o ex-conselheiro, foi seguida pelos três.

Cercou-se de prudências, Xisto, para não se deixar flagrar identificado com o que, outrora, chamara de rebotalho autoexcluso; riu sob os bigodes caóticos. Os cabelos, um monte de estopa para trás da cabeça, com fios para cima; sob o queixo, um cavanhaque ralo, dissimulando o pescoço magro. Um faquir com dificuldades para esconder os ossos.

– Não devemos chamá-lo – advertiu-os Chica.

– Não teríamos o que lhe dizer – antecipou Maújo.

– Não sabemos o que ele tem a nos dizer – atenuou Caetano.

Xisto leu cada variação labial, sentiu-se acusado, viu-se excomungado. Não teria mais direito à palavra, à latrina de Gertrude. Voltou a conversar como um destrambelhado.

– Deprimente – deduziu Chica.

Ninguém se poria em seu caminho se resolvesse atravessar a rua para cumprimentar os ex-camaradas; mas vestira-se daquele modo para mostrar a nova opção de vida. Xisto renegara o figurino de bolcheviques. Saíra do Poço da Panela disposto a remoçar, convencido de que a dialética de bolso falira. Feito um andarilho, não se estabelecera num lugar, para não mostrar os propósitos de polemista astuto, catando prestígio. Dera-se conta de que seus truques de prestidigitador, não os ocultava com facilidade.

Maújo, farejando-o, disse:

– Não demora e ele enjoa de tudo ali, parte para semear noutro lugar.

– É a depressão – admitiu Caetano.

– Também. Você sabia disso há muito tempo, foi seu confessor.

– Fui seu amigo, acreditando no que ele dizia. Enquanto lhe atiravam pedras, mais me convencia que devia ser seu escudo de proteção.

– Xisto tem medo de viver. Não lê Dostoievski porque tem medo de conhecer a própria alma. Até a roupa que usa é para tapear a si mesmo.

– Por que não faz terapia?

– Diz que é tapeação da medicina. Na verdade, continua se escondendo.

– O quarto em que ele dorme é uma furna, adequado para ursos. Até o ar é mofado. Quando ele está dentro, a cor da sua pele é a mesma das paredes.

– Você nunca nos falou dos detalhes que lá encontrou – inquiriu Maújo.

– Lembro de um, agora. Era um retrato dele com Chica, na Sé, em frente à igreja. Estavam vestidos como dois devotos do candomblé.