Morango e chocolate, o romance

O filme foi um sucesso, nos anos 90. Agora, é lançado em português o romance cubano, Morango e Chocolate

Por Marcos Aurélio Ruy*

Morango e chocolate, cena do filme

Morango e chocolate chega ao país com outros três contos do escritor cubano Cuba Senel Paz. O tradutor, Eric Nepomuceno, explica que o autor “tinha oito anos naquele 31 de dezembro em que Fulgêncio Batista abandonou o poder e fugiu da Ilha. O Che Guevara entrou em Havana dois dias depois, seis antes de Fidel Castro chegar à capital cubana”. Senel Paz é assim um típico filho da Cuba revolucionário, tendo vivivo até a adolescência no campo e depois em Havana.


Senel Paz

Morango e Chocolate ficou famoso em 1993 com a adaptação para o cinema pelos diretores Tomaz Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, que conseguiram manter o mesmo teor do conto de Senel, casamento de felicidade rara entre cinema e literatura. A obra mostra a realidade em Cuba com limpidez, senso crítico, com olhos de cubanos. É uma realidade dura, com grandes dificuldades enfrentadas pelos cubanos, principalmente pelo vergonhoso bloqueio econômico imposto pelos EUA há mais de meio século. Mas, diz também que a perseverança e o engajamento político devem ser constantes para que se atinja o novo homem tão almejado como futuro da humanidade, onde acabem as discriminações de todas as espécies e cresça a solidariedade, de respeito, de liberdade e de amor à vida, coisas que somente o socialismo pode prenunciar para a humanidade.

O filme foi um dos maiores sucessos de bilheteria em Cuba e teve grande sucesso internacional justamente por sua humanidade e clareza. Tanto o conto como a película, segundo Nepomuceno, significam “um canto de amor aos Diegos (protagonista da história) desta vida, ao homem verdadeiramente novo: aquele capaz de generosidade, solidariedade, afeto e tolerância”.

Para Senel Paz “escrever é uma tentativa de compreender a vida, de compreender a si mesmo e de dialogar com os outros”. Ele diz que “você sofre pelo que há de triste no destino dos outros e no seu, ou sofre simplesmente porque não pode escrever do jeito que quer, porque não consegue fazer com que suas histórias, no papel, sejam tão boas como em sua cabeça, pensa que nunca vai conseguir que é impossível”. Com clareza diz o autor: “não tenho a menor ideia do que significa a criação literária, nem por que escrevo. Só sei que escrevo e que não posso deixar de escrever, e que sou capaz de defender com a vida meu direito de escrever”.

*Colaborador do Vermelho

Trecho do conto Morango e chocolate:

(…) Eu era a sua última cartada, o último que faltava ser provado antes de decidir que tudo era uma merda e que Deus havia se enganado e que Karl Marx se enganara muito mais, que essa história do homem novo, no qual ele depositava tantas esperanças, não era nada mais que poesia, um deboche, propaganda socialista, porque se houvesse algum homem novo em Havana, não podia ser um desses parrudos e belíssimos Comandos Especiais, mas alguém como eu, capaz de bancar o ridículo, e ele teria de tropeçar comigo algum dia, e me levar ao refúgio, oferecer chá e conversar; conversar, caralho, conversar, pois não estava sempre só pensando naquilo, com me explicaria em outro de seus discursos.

– Estou indo – falei finalmente, levantando, e olhei para ele, nos olhamos.

Ele falou sem se levantar da cadeira.

– Volte, David. Acho que não consegui me explicar.

Talvez tenha parecido ser um camarada supérfluo. Como todo mundo que fala muito, digo bobagens. É porque fico nervoso, mas me senti muito bem conversando com você. Conversar é importante; dialogar, muito mais. Não tenha medo de voltar, por favor. Sei respeitar e me comportar como qualquer pessoa, e posso ajudá-lo muitíssimo, emprestar livros, conseguir entradas para o balé, sou amicíssimo de Alícia Alonso e adoraria apresentá-lo algum dia na casa de Loynaz, às cinco da tarde, um privilégio que só eu posso proporcionar. E gostaria de lhe oferecer um almoço lezamiano, uma coisa que não ofereço a qualquer um. Sei que a bondade dos veados é uma faca de dois gumes, como o próprio Lezama aponta em algum lugar de sua obra, mas não neste caso. Quer saber por que gosto de conversar com você? Puro palpite, intuição. Acho que vamos nos entender bem, apesar de sermos diferentes. Sei que a Revolução tem seu Aldo bom, mas comigo aconteceram muitas coisas ruins; além disso, tenho minhas próprias ideias. Pode ser que eu esteja enganado, veja bem, e gostaria de discutir essas coisas, gostaria que me escutassem, que me explicassem. Estou disposto a conversar com um revolucionário. Vocês só falam cm vocês mesmos. Não se importam com o que os outros pensam. Volte. Não vou nem tocar no assunto da veadagem, juro. Tome, leve La guerra del fin Del mundo, e olha aqui, leve também Tres tristes tigres, que você tampouco iria conseguir por aí.

– Não! – e saí batendo a porta.

“Agora, sim, muito bem!”, disse a mim mesmo na rua, ouvindo ainda a batida da porta: nem tomar dele os livros, nem aceitá-los de presente. E meu espírito, que dentro de mim havia estado preocupado o tempo todo, relaxou-se e começou a experimentar certo orgulho pelo seu garoto, que na reta final não falhava. Era o que esperava de mim, este seu jovem comunista que nas reuniões acabava pedindo a palavra e, embora não se expressasse bem, dizia o que pensava, e Bruno já o havia convocado duas vezes. Isso, com meu Espírito, porque com minha Consciência a coisa não era tão fácil assim, e antes de chegar à esquina pedia explicações, mas devagar e direito, a David Álvarez, de por que, sendo homem, havia ido à casa de um homossexual; sendo revolucionário, havia ido à casa de um contrarrevolucionário; e, sendo eu ateu, havia ido à casa de um crente. Tudo isso enquanto eu caminhava, pegava o ônibus e não me incomodava com os empurrões. Por que na minha frente, era impossível ironizar a Revolução (“sua Revolução David”) e ressaltar a morbidez e a podridão sem que eu acabasse com aquilo? Não senti a credencial no bolso, ou a credencial só servia para o bolso? Quem é você, afinal de contas, rapazinho? Já está esquecendo que não passa de um caipirinha de merda que a Revolução tirou da lama e trouxe para estudar em Havana? Mas, se uma coisa eu aprendi na vida, é não responder à Consciência em momentos de crise. (…)

Livro
Senel Paz. Morango e chocolate. São Paulo, Geração Editorial, 2012