Renata Pallottini: Eu só quero fazer

Ao completar 81 anos, a poeta paulistana Renata Pallottini é uma fonte infinita de versos, literatura e beleza

Por Ieda Estergilda de Abreu

Renata Pallottini
Trabalhando de canivete, no pau de aroeira:
– mas assim você não vai acabar nunca!
– Eu não quero acabar
eu só quero fazer.
(
Pallottini, Renata: Chocolate amargo. São Paulo, 2008)
 

Ela não para. Terminou de escrever um novo romance – ou narrativa em prosa – Eu Fui Soldado de Fidel, que revive as lembranças da amiga Fidelina González, integrante das milícias da revolução cubana. Trabalha na trilogia de ensaios sobre o gênero romance policial, da qual já deu conta de dois autores: o cubano Leonardo Padura Fuentes e o brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza (o terceiro volume será sobre a americana Donna Leon). E ainda tem a poesia e o plano de continuar a escrever a história do avô anarquista.

Renata Pallottini nasceu há 81 anos na “Frei Caneca, em Maternidade fresca”, como relata em Sair de Sampa. Torce pelo Corinthians desde pequena. “Futebol é uma coisa viva, um prazer. Até certa idade eu ia aos campos, hoje já não dá, mas leio as páginas esportivas, discuto com as pessoas.” Poeta, advogada, professora universitária e dramaturga, chegou a ser presidente da Comissão Estadual de Teatro, de 1969 a 1970, sucedendo à atriz Cacilda Becker. Qualidades e qualificações à parte, “tem também muitos defeitos, é uma criança, ainda”, brinca sorrindo e com olhar maroto.

Sobre as múltiplas expressões artísticas, diz que é difícil separar seu ofício em tantas partes. “Nem quero, sou uma escritora”, enfatiza. Com mais de 20 livros publicados e autora de 21 peças teatrais, além de vários roteiros para seriados de televisão e de traduções e ensaios, Renata recebeu prêmios como Molière, Anchieta e Governador do Estado, em teatro; Pen Club e Jabuti, em poesia; e APCA, em tradução e televisão.

A marca do poético

É na poesia que Renata diz realizar-se com plenitude. Todas as outras formas em que se debruça levam a marca inconfundível do poético, o que a caracteriza e a diferencia como criadora. Desde os primeiros poemas publicados nas revistas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, nos anos 1950, até a produção atual, Renata empreende uma busca constante pelo melhor. Para ela, não se aprende a ser poeta. “Creio que se pode buscar um aperfeiçoamento; porém, não sei se isso pode ser chamado de aprendizado para escrever poesia.”

Na contracapa de seu livro Chocolate Amargo (2008), o crítico Álvaro Cardoso Gomes diz que Renata Pallottini faz uma poesia entre lírica e indignada, terna e crua. Para a autora, “a poesia lírica não se pode caracterizar apenas como pura versão de amores contrariados, de emoções individuais e privativas, ela é e tem sido, através dos tempos, denúncia, arma de combate e palavra modificadora”. Por isso, ela se comove com os versos de Federico García Lorca, Oscar Wilde, Walt Whitman, Castro Alves, Sophia de Mello Breyner Andresen, Rafael Alberti e tantos outros. Carlos Drummond de Andrade, com quem se correspondeu durante 25 anos, disse que a poesia de Renata “é uma das realizações mais vibrantes no campo do lirismo voltado para a vida real e imediata, a vida não pintada de sonho”. A escritora encontrou Drummond uma única vez, ganhou dele um poema e guarda a lembrança de “uma pessoa extremamente terna”.

Renata começou a escrever cedo, atendendo a provocações da sua sensibilidade ou indo atrás do que lhe irritava “a pele da alma”. Os primeiros livros (Acalanto, 1952; O Cais da Serenidade, 1953; O Monólogo Vivo, 1956; e A Casa, 1958) são “conjuntos de poemas soltos, sem intenção unificadora”. Depois dessa fase, seus trabalhos se tornaram mais planejados, menos confessionais. O balanço que faz de mais de meio século de poesia revela o desejo de continuar a dialogar com todos. “Escrevo para fazer contato, para tocar o outro e me sentir tocada.”

Sobre a geração de poetas que se encontra hoje na casa dos 40, 50 anos ela observa que, apesar de haver muita gente que faz poesia de qualidade, a maioria da produção dos mais jovens não é boa. “Um ou outro se destaca, e procuro fazer o que fizeram comigo: encorajar a escrever sempre, publicando ou não. Fico preocupada com os que se apoderam dos espaços nos meios de comunicação, pois nem sempre são os melhores. Uma coisa é produzir um grande trabalho, outra é ficar investindo nessas formas de divulgação. Se você gasta muita energia para procurar caminhos para aparecer, está desperdiçando a energia que deveria ser gasta na verdadeira produção.”

Amor ao público

A atração pelo diálogo e pela expressão do conflito a levou a escrever para o teatro. Na Espanha, onde viveu entre 1959 e 1960, com uma bolsa de estudos e para onde sempre volta, escreveu a primeira peça, A Lâmpada. Com a comédia O Crime da Cabra, de 1965, ganhou os prêmios Molière e o Governador do Estado. Em versão curta, o texto foi lançado antes no teleteatro da TV Excelsior, com direção de Ademar Guerra e Antunes Filho. Sete anos depois, a censura vetou Enquanto se Vai Morrer, drama sobre a história da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. “A censura interferiu na minha carreira e na minha evolução; ela provoca um vácuo no autor, fica uma coisa atravessada na garganta.” Em 2006, Renata comemorou o lançamento do seu Teatro Completo (Perspectiva), com 888 páginas que reúnem suas 21 peças.

Ela vê o teatro de hoje mais sensorial, fragmentado, de pouco texto, “calcado muito no monólogo – por razões até de ordem prática”. Entre os nomes da nova geração, considera o pernambucano Nilton Moreno um grande autor, e sua peça Agreste uma obra-prima. Outra característica do teatro atual, segundo ela, são as adaptações de grandes autores. Para Renata, esse caminho é especialmente difícil, pois nem sempre as recriações estão à altura dos originais. “Acho mais válido criar por si só.”

Na televisão, escreveu para grandes projetos, como a série Malu Mulher, da Rede Globo, e para o programa infantil Vila Sésamo, da TV Cultura. Ainda hoje, mantém o hábito de assistir TV, “não só por gosto, mas também por uma questão profissional. Quando estreia uma telenovela, os jornais e as rádios me telefonam pedindo opinião e digo que não estou vendo essa, mas aquela outra, e me divirto. A TV é um veículo poderoso, que atinge milhões de pessoas. Para o escritor, é a possibilidade de ter sua obra vista em Goiás, no Rio Grande do Sul e no Amazonas ao mesmo tempo”.

Renata acredita que, com a sua idade, ter uma saúde razoável é fundamental. “Pensar legal, ainda poder andar pelas ruas, gostar de conversar com as pessoas, apreciar um bom prato, um bom copo de vinho, poder viajar. Tenho bons amigos, gosto deles, gosto da vida. A perspectiva nesta faixa etária não é grande, mas o quanto se puder seguir em frente é prêmio, ganho. Tristezas, perdas, lutos, tudo faz parte quando se vive muito.”

Poema

O Pão Amargo

"Ela foi sentar-se em frente dele a boa distância,
como a de um tiro de arco;
pois disse:
que não veja eu a morte do menino.
Sentada em frente dele,
levantou sua voz e chorou."

Gênesis, 21:16
 
O pão amargo e a água consumada
do odre seco em cáustico deserto;
sob o mirrado arbusto a esquiva sombra
se nega pela areia e é como um rastro.

Sem planta fresca, a fruta apetecida
traz a longínqua fixação do incerto;
quando a brasa arenosa for alfombra
tornar-se-á carícia o fogo do astro.

Para a criança adormecida ao braço
o olhar alonga, e faz como se fosse
para nos olhos tê-la, traço a traço.

Lembrando a noite aquela e a face gêmea
que lhe roçara a face em mágoa doce,
a escrava chora a condição de fêmea.
 

Fonte: Jornal de Poesia e Fonte: Itaú Cultural