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Cap. XXIX – Meu touro! Minha vaca!

Chica recurvou-se nas ladeiras, nutrindo-se na brisa ininterrupta. Dobrando a esquina da Ladeira de São Francisco, o vestido de renda azul colado ao corpo, resfolegando sem queixas, segurando o abdome.

– Descansa em casa – recomendava a tia.

– Descanso quando der à luz. O médico não me recomendou cama, quer que eu me movimente para facilitar o parto. Acho bom assim… Meu filho não será preguiçoso.

– É você, Francisquinha. Vai ter um menino sadio depois de arrancar a própria língua.

– Vou gritar de alívio, de alegria; isso sim.

– Benza-Deus, só por causa de umas plantas de nada.

– Não está sentindo o cheiro? As açucenas brancas.

– Sinto o cheiro do café, do café e do cuscuz na água fervida.

– Precisa controlar o seu olfato para sentir o cheiro da vida. Eu sinto o cheiro do café e o perfume das plantas. Quero que meu filho sinta os cheiros.

– Não quer mesmo saber se é menino ou menina?

– Quero que nasça sadio. Gosto de matutar sobre o sexo de meu filho sem saber se será menino ou menina. É o prazer da gravidez.

Continuou subindo e descendo o outeiro do Carmo; fez amizade com o guarda. Gordo, baixo, escondendo a careca no quepe, atenuando-a com um bigode ralo, logo o homem chamou-a de Francisquinha. Fora avisado de que desconfiasse de qualquer incursão ao outeiro; podia ser para o plantio e cultivo de maconha. Não desconfiou de Chica, sobrinha da velha Teotônia; inda por cima, prenha. No carnaval, quando o cheiro do cânhamo descera à praça, intimidara-se com os muitos usuários. O prumo nas pernas de Chiquinha, ele o apreciou.

– Sou eu e pato, seu Manoel.

– Por quê?

– Antes de nadar, passo graxa nas pernas.

– Nem todo pato. Uma pata choca não a acompanharia.

Uma vez, acompanhada do Babalorixá, o guarda correu para alcançá-los antes que subissem.

– Meu pai, preciso falar com o senhor! – Tirou o quepe, o guarda.

Chica seguiu.

– É sobre meu emprego. Tenho medo…

O babalorixá interrompeu-o, seguiu Chiquinha.

– Aqui não, meu filho. Só em casa que eu posso jogar os búzios.

– Por que não o atendeu !? – perguntou Chica.

– Magina se eu vou adivinhar no meio da rua, sem búzio, sem vela nem carta. Eu,
hem!

– O homem tá aperreado.

– Ele que suba no palácio! Esse povo tem que aprender… Ele que suba e eu limpo todos os caminhos pra ele.

Colheram flores. Voltaram à Sé. No alto, sentiram o vento forte. Ele importou-se com os pitós na cabeça, amarrados em biliros.

– Já foi visitar o arcebispo? – quis saber Chica.

– Nunca recebi visita dele!…

– Por que não lhe oferece um ramo de cada uma dessas flores?

– O padre não me dá um bom-dia… Eu vou jogar incenso de margaridas na batina dele? Não, minha filha, nem invente.

– Você estaria dando exemplo!

– Ih, Francisca… Pára com isso!

– Queria ver a cara do arcebispo, quando o visse com a cabeça cheia de cocós amarrados, pintados de amarelo, no corredor do seminário.

Na quitanda…

– Tem camomila, Francisca? Quero dormir.

– Hoje é dia de consulta, Edu!

– Ave Maria! Nem me lembrava.

Chica desfrutou a prenhez nas ruas, no outeiro, no amasso da terracota. Na oficina, imaginou-se aleitando, amassando, absorvendo o cheiro da própria mama. Desfrutou-a na intimidade dos aposentos, olhando-se na penteadeira, em pé, sentada no pufe de veludo. Tirava o vestido para se olhar só de calcinha, nua, de frente, de lado. Com os quadris abastados, viu-se mulher feita, sem se lembrar das ancas finas na adolescência, de quando menstruara pela primeira vez. Viu-se mês a mês, de múltiplos ângulos. Curiosa, indócil, antecipou cada ciclo da gestação.

Depois da refeição, corria para a oficina com a imagem que engendrara à noite, na madrugada em que exercitara com o parelho um trapézio impossível para a obtenção do gozo. Nas surubas, surgiam fêmeas grávidas contorcendo-se nos espasmos; fêmeas no começo da prenhez, no meio, no fim, com as pernas abertas, as pernas e a vagina.

– Quero ser uma vaca de tetas cheias.

– Suas tetas já são grandes – respondeu Maújo.

– Quero esborrar.

– Terá que andar com um balde pendurado no pescoço.

– Está debochando… O que quero dizer é que quero sentir-me nutriente.

– Você será uma parideira inveterada. Terá que parir todo ano para satisfazer o instinto; nunca vai satisfazer o instinto. Só o cansaço da idade vai tirá-la da vontade de parir. Veja seus quadris largos, sinal de que é mulher reprodutora.

– Monte-me no chão, faça-me de vaca; monte-me como um touro, seja um touro em cima de mim. Quero ser sua vaca submissa, mugindo de gozo.

– Grite, muja, acorde Teotônia, mas daqui a seis meses não esteja aleitando um bezerro.

– Se não satisfizer meu desejo, posso parir um novilho. Há casos na bíblia.

– Só se for da parte de Ogum. Não seria meu filho.

– Não tem ciúme de Ogum?

– Respeito sua crença. Ogum é imaterial.

– Ogum também me pega.

– Ogum sugere seus sentidos. Acho até bom. Ele estimula você para mim.

– Meu touro!

– Minha vaca!

– Está chovendo.

– Talvez seja o estímulo de Ogum.

– Vamos para baixo do sapotizeiro. Trepamos como dois bovinos sob a chuva.

Emporcalharam-se da cabeça aos pés. Os cabelos viraram uma massa pastosa de fios com terra molhada. O rosto sardento cobriu-se de lama, de musgos arrancados no tronco do sapotizeiro. Ela gemeu, mordeu-o por não crer que mesmo tendo-o sob as mãos, não podia arrancar-lhe a carne.

Trovões, relâmpagos, água escorrendo na biqueira. Chica sugeriu-se aos poucos, soltando-se dele; criou força, mais forças.

– Emi Neji Ogum Lacae! – voz grossa, a língua em parafuso.

– Chica…

Não atendeu pelo nome de batismo. Com o fim do temporal, a fúria dos espasmos foi cedendo. Maújo cuidou para que não desse marradas com a cabeça em algum tronco, na parede do poço, do tonel cheio d’água. Atenuado o transe, sentada no chão empoçado com as duas pernas curvadas, olhou para cima, para Maújo. Os olhos perderam o brilho. Tinha um rosto malsão, olhos mortos. Submissa, quase rogando perdão.

– Precisa de outro banho – disse Maújo.

Deixou-se lavar sob a bica, não moveu um só nervo do corpo prostrado, rendido.