O pagador de promessas faz 50 anos – sem entrar na igreja!
Dias Gomes criou a história do Zé do Burro, um homem do povo, dono de uma pequena terra no Nordeste, que vê seu animal cair doente sem esperança de cura. Apela para a fé e vai a um terreiro, onde se compromete a entrar na igreja de joelhos, com uma enorme cruz de madeira nos ombros se o seu burro sarar.
Por Christiane Marcondes e José Carlos Ruy
Publicado 22/06/2012 19:13
A história é muito simples; já fazia sucesso no teatro quando Aníbal Massaíni resolveu leva-la para a tela. Anselmo Duarte, o protagonista, topou com aval de Dias Gomes, e os dois saíram em busca da verba de produção, que seria dividida meio a meio.
Pensaram em dar o papel de Rosa, a mulher do Zé do Burro, para a consagrada Ana Maria Dias, mas ela adoeceu e foi substituída pela estreante Glória Menezes, que se tornou, a fiel parceira do Zé. Os acasos são sempre bem-vindos porque de um jeito surreal ungem os sucessos. Quais grandes histórias do cinema não enfrentaram percalços de diferentes tipos? Especialmente no Brasil, onde a arte é fruto, até hoje, de muito mais suor e raça do que agentes e produtores. As portas estão abertas para a grande indústria, mas qualquer talentoso aventureiro sabe que tem que ir entrar pelos fundos, na calada da noite.
Em O Pagador de promessas, os bastidores árduos como a terra e sol quente da Bahia lapidaram as interpretações e fermentaram a motivação do elenco, que contava também com Dionísio Azevedo, o padre intransigente, e Othon Bastos, um jornalista. Sempre há um jornalista e uma prostituta, papel que coube a Norma Bengell.
Massaíni Júnior, o filho, conta que os aplausos do público na manhã da exibição em Cannes já sinalizavam as chances o premio de melhor filme, naquele longínquo 1962. A noite de festa confirmou as expectativas e deu a O pagador de promessas a primeira e única Palma de Ouro para um filme brasileiro.
Um azarão, com fôlego de campeão, bom exemplo de como se construiu o cinema nacional, muito mais no caminho de “uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”, no melhor gênero Glauber Rocha.
O conflito que sustenta a trama se mantém, meio século depois: a contradição entre a religiosidade popular, mestiça do catolicismo ibérico e da fé ancestral africana. A intransigência de um sacerdote que não aceita “contaminar” sua igreja (a Igreja de Santa Bárbara, em Salvador. BA) com o culto dos orixás impediu que Zé do Burro pagasse sua promessa – ele só entra na igreja morto, seu corpo carregado sobre a cruz que ele depositaria aos pés da santa. Do lado de fora da igreja houve de tudo: oportunismo político, sensacionalismo da mídia (a televisão ainda não existia como hoje…), conflitos religiosos, repressão policial. E o Zé do Burro, atualizado na multidão de fiéis dos cultos de origem africana, continua do lado de fora de muitos templos católicos. Mesmo que convivam em seu coração as figuras de Iansã ao lado da de Santa Bárbara.
O conflito religioso é o biombo que esconde o racismo e a luta de classes, num roteiro simples mas cruel que fez de O Pagador de Promessas um dos maiores clássicos do cinema brasileiro.