“O que Eu Mais Desejo”: Sinal dos tempos

Adolescentes evocam cruzamento de trem-bala para realizar seus desejos neste filme do diretor japonês Hirokazu Kore-Eda

Por Cloves Geraldo*

Dois garotos vivem em cidades distantes, depois da separação dos pais. O mais novo Koich (Koki Maeda), com o pai, Kenji (Joe Odagiri), o mais velho Ryu (Ohshirô Maeda) com a mãe, Nozomi (Mene Ohtsuka), na ilha de Kyush. E se comunicam pelo celular. A preocupação de Koich é saber se o irmão cresceu. Às vezes, eles falam sobre os pais. Ambos, no fundo, os querem juntos. Com esta história simples e sem grandes choques, o diretor japonês Hirokazu Kore-Eda (“Maborosi, A Luz da Ilusão”) insere o espectador, em “O Que Eu Mais Desejo”, numa estrutura social onde fantasias e desejos excluem divindades.

A vida que Koich e Ryu passam a levar com a separação dos pais os obriga a criar seus próprios espaços. Há, no entanto, um vazio a preencher. E ambos começam a alimentar o desejo de reuni-los. Começam a planejar uma viagem para uma cidade distante, onde dois trens-bala se cruzam, para que isto aconteça. Inexistirá ritual ou oferenda; tampouco se submeterão a qualquer penitência. Farão apenas o pedido em meio ao furor da velocidade dos trens.

Os trens, no caso, substituem a Divindade, o “Ser Superior”. A energia deles emergida no momento em que ultrapassam um ao outro, tem, para os garotos e sua turma, a capacidade de transformar sonho em realidade. Não há milagre a que recorrer ou divindade a materializá-lo. Na sociedade tecnológica, a máquina desprega-se da materialidade e a substitui. No universo do consumismo imediato, onde o futuro é apenas uma inscrição longínqua, a ultrapassagem dos trens pode levar, na visão dos garotos, à reaproximação dos pais.

Esta ideia de que existe outra forma de transformar a realidade, sem passar pelo convencimento ou o esforço não difere da dos fiéis que percorrem quilômetros para cumprir uma promessa. Com os garotos não é diferente. A reconciliação de seus pais está acima de suas forças e entendimento. A questão é que eles não centram suas projeções/sonhos nesse “Ser Superior”, mas em mecanismos que mostram as substituições operadas pela sociedade capitalista-tecnológica. E, notadamente, em seu poder para materializar desejos.

Divindade perde seu espaço

O mesmo ocorre com os santos outrora materializados em imagens, hoje substituídos pelos pôsteres, camisetas, tatuagens, chaveiros, colares de ídolos do rock. O inglês Peter Watkins, em “Privilégio” (1967) prenuncia esta metamorfose. O astro do rock crucificado sob os holofotes, numa catarse pagã. Koich e Ryu e seus amigos, dentre eles as garotas Tany e Meguni, não percebem esta mutação. Estão inseridos num universo onde isto é comum. A estrutura capitalista do instantâneo, do consumismo desenfreado, criou outra relação com o transcendente, o sagrado.

Desnecessário dizer que cada estrutura sócio-político-ideológica cria seus “objetos de adoração”. E ao fazê-lo soterram os existentes. Mesmo aqueles defendidos pelos que se apegam ao Sagrado, ao Divino, ao “Ser Superior”. O capitalismo, para atender seus interesses mercadológicos, os substitui por produtos fetichizados e os tornam “objetos de desejo”. Kore-Eda, talvez não pensasse nessa mutação ao escrever e dirigir seu filme. Mas, em arte, o subconsciente acaba por projetar o que o consciente absorve e o guarda para a construção da obra de arte. E vale o que está na tela.

Koich e Ryu, no instante dos pedidos, invertem as posições de seus desejos. Talvez entendam que o ideal esteja longe de sua intervenção. Não são apenas suas vontades que moverão seus pais. É preciso algo mais, que ainda não apreenderam. Menos Tany, que vive com a mãe e sonha em tornar-se atriz. O pedido não é “a graça recebida”, é o que a faz mover-se em direção ao que almeja. Kore-Eda muda o eixo da crença para a ação. É uma bela desconstrução. É como se dissesse: mova-se! A viagem torna-se, assim, uma forma de descoberta.
O filme, menos complexo que “Maborosi” (Sobre a crença da garota Yumiko de que a morte prescreve seu caminho, cheio de tragédia) – trata da sociedade japonesa atual. Os personagens, de classe média, configuram o traço comum às sociedades capitalistas. Mães que cuidam sozinhas dos filhos (A mãe de Tany), a fantasia da juventude em ganhar fama (Kenji grava um CD) e a dificuldade de Nozomi em encontrar emprego decente. E os filhos que, na ausência deles, criam seus próprios espaços e fantasias. A aceitação de tal (des) estruturação, como fato dado, ocorre sem questionamento – cada um cuida de si a seu modo.
A contraposição a este estado de coisa, mostrando que ela se move, é o comportamento de Tany e dos irmãos Koich e Ryu. Mesmo que se considere a mutação da crença, eles têm a capacidade de transcendê-lo. Transformando-o em ação, caso dela, e mudando seu desejo, caso deles. A capacidade de Kore-Eda de transformá-los em seres reais em meio às citadas contradições torna-os otimistas, pois se trata afinal de descobertas, e estas podem servir de lições para o futuro, ainda que soterre dogmas e crenças.

Ficha técnica:
“O que Eu Mais Desejo” (“Kiseki”).
Drama. Japão, 2011. 128 minutos.
Música: Quruli.
Fotografia: Yamazaki Yotake.
Roteiro/Montagem/Direção: Hirokazu Kore-Eda.
Elenco: Koki Maeda, Ohshirô Maeda, Joe Odagiri, Mene Ohtsura, Kiki Kirin.

*Cloves Geraldo é colunista do Vermelho