Destituição de Lugo: um dardo no coração da Unasul

Os acontecimentos de 21 e 22 de junho no Paraguai, que levaram à ruína do governo do presidente constitucional Fernando Lugo, ficarão como outro capítulo nefasto da história republicana do pequeno país sul-americano e da América Latina.

O golpe de Estado de novo tipo – chamado agora de julgamento político -, aprovado por uma ampla maioria no Congresso pela câmara de deputados e senadores, longe de intimidar, ratifica que a direita paraguaia e mundial permanece à espreita das mudanças que estão ocorrendo hoje na América Latina.

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Não importa que o processo iniciado em 2008 com a chegada do bispo católico à presidência não seja dos mais radicais do continente, nem que o poder fático tenha permanecido intacto nos quase quatro anos que governou. As forças reacionárias paraguaias, do continente e internacionais, se preocuparam mais pela maneira como a nação sul-americana, de pouco mais de seis milhões de habitantes, foi se inserindo, não com poucos tropeços, na onda integracionista da região.

A ameaça de julgamento político pendeu como a espada de Dâmocles sobre Lugo desde o início de seu mandato e foi utilizada mais de vinte vezes pelas forças políticas opositoras para ter em xeque o mandatário e seu governo.

Entre os argumentos utilizados pela direita em todo este período, estiveram acusações de incapacidade para governar, supostos vínculos com o autodenominado Exército do Povo Paraguaio e com o sequestro do pecuarista Fidel Zabala.

Esta feroz campanha, que não parou nem um instante, incluiu também a suposta "incitação à luta de classes" por parte do presidente e o escândalo pela denúncia de três mulheres que exigiam reconhecimento de paternidade de seus respectivos filhos.

No final do ano passado, Lugo foi acusado e ameaçado com julgamento político por ter supostamente violado o artigo 143 da Constituição, ao assinar o chamado Protocolo de Montevidéu, Usahia II, sobre o compromisso com a democracia.

Os governantes dos Estados e países associados assinaram esse documento na reunião de cúpula do Mercado Comum do Sul (Mercosul), realizada no Uruguai em 20 de dezembro de 2011.

A última ameaça e a gota d'água usada como "justificativa" para levar o governante a julgamento surgiu de um duvidoso e trágico acontecimento, do qual foram vítimas mortais 11 camponeses e seis policiais, quando estes últimos tentaram desalojar os trabalhadores rurais de uma fazenda cujo proprietário é do Partido Colorado.

Ainda que nunca tenha existido consenso no Parlamento entre as diferentes forças políticas, sendo a maioria opositora de colorados e liberais do Partido Radical Autêntico (PLRA), agora prevaleceu a quase total unanimidade entre os deputados e senadores.

Esse é um elemento importante a se considerar em um país onde atingir o consenso majoritário passa por intensas negociações e, mais ainda, com a rivalidade política manifesta entre liberais e colorados, não apenas no âmbito ideológico.

Importante lembrar que Lugo chega ao governo sustentado por uma aliança de partidos políticos e movimentos sociais, cuja base eleitoral fundamental foi o próprio PLRA, força que o acompanhou com altos e baixos, a favor e contra até sua destituição.

A carência de uma base política e parlamentar que o apoiasse e a existência de uma esquerda dispersa e, por momentos, assustada, constituíram elementos essenciais da fragilidade de seu governo, no qual a negociação sempre foi uma válvula de escape.

Outros dois aspectos interessantes vinculados ao questionado julgamento político, foram sua realização a nove meses das eleições gerais de 2013 e a rapidez com que os legisladores de ambas câmaras se puseram de acordo e o executaram.

Os partidos tradicionais vêm se preparando com tudo para recuperar o espaço perdido e é bastante provável que cheguem de novo ao poder, sem um rival atraente por parte da esquerda e uma figura ao redor da qual se poderia reunir uma aliança, ainda que nada esteja ainda definido.

Chama a atenção também, que em ocasiões anteriores setores como o da Igreja, o empresarial e pecuarista se opuseram à realização desse engendro constitucional, agora se mobilizaram ou aprovaram abertamente a aplicação do artigo 225 da Lei suprema, como foi o caso da Conferência Episcopal Paraguaia.

O golpe de Estado, disfarçado por uma suposta legalidade constitucional, acontece faltando pouco tempo para que o Paraguai passe ao Peru a presidência pró tempore da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

Também não pode se ignorar que no vizinho Brasil mais de uma centena de chefes de Estado e de Governo participavam na reunião Rio+20 sobre sustentabilidade meioambiental. Pode se interpretar que os acontecimentos na nação guarani são um dardo envenenado disparado contra o bloco subregional e tudo o que este representa do ponto de vista da integração da América do Sul.

Por isso, este golpe à democracia ultrapassa as fronteiras paraguaias e se insere em um novo capítulo de servidão da direita latino-americana e internacional contra os povos do continente.

Não cabem dúvidas que, por trás deste sinistro plano – repetido uma e outra vez na história da América Latina -, estão as mãos escuras dos Estados Unidos, principal interessado em conseguir o retrocesso continental.

O sociólogo paraguaio Tomás Palau, falecido recentemente, assegurou em entrevista à Prensa Latina que seu país "em certa medida, é essencial para as pretensões estadunidenses, não só por sua localização geográfica, senão pela adesão das lideranças políticas com respeito à relação com Estados Unidos".

No período de 35 anos que governou o ditador Alfredo Stroessner (1954-1989) – disse Palau – mais de uma geração de políticos se formaram nessa "incubadora", todos iguais desde o ponto de vista ideológico.

Fonte: Prensa Latina