São Paulo de bar em bar: o carnívoro e a vegetariana

Relembrando alguns botecos “da esquina”, que nem sempre ficavam na esquina mas eram frequentados por serem os mais próximos da casa da gente (às vezes mais próximos do local de trabalho), me veio à cabeça um que havia perto do Sesc Pompéia, onde eu era diretor cultural. Este ficava numa esquina mesmo, no início das ruas Clélia e Carlos Vicari, que começam no fim da avenida Francisco Matarazzo.

Por Mouzar Benedito.

O carnívoro e a vegetariana

No Sesc, nessa época, não se vendia bebidas alcoólicas; então quando dava vontade de tomar uma cerveja íamos nesse sujinho sem nome, que não existe mais. Lá aprendi uma coisa interessante. Havia algumas pequenas indústrias ali por perto e os operários iam tomar café e cachaça nesse boteco. Um dia vi um metalúrgico comendo um pedacinho de sabão, fiquei curioso e perguntei porque ele fazia aquilo. Não sei se era verdade mas ele me disse que comendo um pouquinho de sabão, bem pouquinho, a temperatura do corpo aumentava, ele ia ao médico que comprovava uma febre razoável e o dispensava por um dia. Fazia isso sempre que precisava de uma folga.

Ainda perto do trabalho, um bar que me divertia era o Mosca Frita, perto da Editora Globo, no Jaguaré. Quando a Globo mudou de Pirituba para o Jaguaré, não instalou logo os refeitórios, e as opções de comida eram aquele sujinho (que também era ponto para bebericar) e os distantes e insossos restaurantes da praça de alimentação de um shopping para o qual a empresa oferecia transporte aos interessados. Um dia levamos uma diretora de uma revista feminina lá e ela ficou enojada, dizendo que na comida tinha até mosca frita, o que era mentira mas o nome pegou.

E por falar em bar próximo a editora, quando trabalhava no Guia Rural Abril, perto da avenida Berrini, a gente não se apertava com comida e bebida: um sujinho numa praça próxima era ótimo. Nesse tempo, durante o governo Sarney, houve um boicote dos fazendeiros e frigoríficos e faltava carne em todos os lugares… Menos no nosso sujinho. A gente comia direto uns bifões enormes, enquanto o pessoal que procurava lugares mais sofisticados mal conseguia comer um bifinho de vez em quando, pagando caro.

Nesse sujinho, a gente bebia bem, também. Em fins de tardes às vezes esticávamos até lá. Um dos companheiros frequentes de almoçar e beber ali era o Luigi Mamprim, que na juventude, foi partisan, quer dizer, guerrilheiro contra os fascistas, na Itália. Depois da guerra, veio para o Brasil trabalhar como fotógrafo e tornou-se um dos mais requisitados profissionais da área. Participou da fundação da revista Realidade, trabalhou em tudo quanto era revista da Editora Abril, inclusive o Guia Rural, onde eu estava.

Era um ótimo papo, um grande companheiro, mas quem viajava a trabalho com ele sempre reclamava de uma coisa: era só sair de São Paulo que baixava um sentimento italiano nele que ninguém segurava. Aqui, no nosso tradicional sujinho, comia filé quase cru todos os dias, mas quando viajava, especialmente para regiões como o Nordeste ou Centro-Oeste, queria de qualquer jeito comer talharini ao pesto com pão italiano e coisas do gênero. Coisas, aliás, que na época ninguém sabia o que era por aquelas bandas.

Um dia viajou com uma jornalista muito competente para o oeste da Bahia. Não vou dar o nome dela aqui, pois minha intenção é contar a história, não expor a moça. Vou usar um nome fictício, Maria. Formavam uma dupla muito interessante, ele como fotógrafo e ela como repórter. Se ele queria de qualquer maneira comer macarrão ao pesto com pão italiano e umas carnes feitas à moda da sua terra, ela era vegetariana, mas não daquele tipo de vegetariana que come arroz, feijão, tomate, alface… Era uma das que não frequentavam o sujinho da praça, pois não era carnívora e muito menos onívora. Chegava nos confins do judas e queria encontrar um restaurante em que pudesse comer rúcula, escarola e outras coisas que no oeste baiano ninguém jamais tinha ouvido falar ou imaginava que existia.

Fiquei curioso pra ver que bicho ia dar, os dois trabalhando juntos durante quase um mês naquela região. E deu mesmo pano pra manga. Soube que foi briga direto. E no dia que voltaram, por coincidência, encontraram-se no elevador e continuaram a discussão em altos brados. Entraram na sala, a Maria pegou uma máquina de escrever e rumou com ela firme e forte em direção à cabeça do Mamprim. Se não fosse um bando de jornalistas — o Celso Goes, o Roberto Manera, o Nivaldo Manzano e o Décio Bar — pra segurar a fera, era uma vez Luigi Mamprim! Nosso companheiro de comer e beber no sujinho da praça, que lutou bravamente contra o fascismo e sobreviveu, teria ido pro beleléu sob o golpe certeiro de máquina de escrever, desferido por uma jovem repórter que tinha lá sua brabeza e uma força que eu julgava inexistir numa vegetariana pura.