Zona Sul: um mundo de incongruências

O escritor Jeosafá Fernandez Gonçalves acaba de lançar o terceiro romance da série Era uma vez no meu bairro: agora, Zona Sul. Foi na 22ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, na última quarta-feira (15). Ironia, humor, emoção e, sobretudo, uma crítica social ferina – é com estes ingredientes que JeosaFá vai descrevendo a vida nos bairros de São Paulo. Confira nesta entrevista.

Por Renata Vila Sabrina

Borba Gato

Pergunta: Enfim, Zona Sul chega ao público. Que capítulo pretende ler no lançamento?

Jeosafá: O quarto capítulo.

P: Alguma razão especial?

J: Não sei se é razão especial, mas, do ponto de vista cronológico, esse capítulo contém a ponta mais longínqua da série e é uma espécie de repositório dos temas e conflitos que se desdobram em todos os romances da série.

JeosaFá e as incongruências de São Paulo

P: Então, pode-se dizer que, se a série Era uma vez no meu bairro tivesse sido escrita, do ponto de vista cronológico, linearmente, esse seria o capítulo um?

J: Sim, seria. Acontece que o enredo não é linear, então, só se descobre os eventos do passado, mesmo o mais distante, à medida que se avança na narrativa, em que o jogo de tempos forma uma espécie de roteiro de leitura.

P: Não pode haver incongruências nessas idas e vindas na linha do tempo?

J: Como “pode haver”? Desde o Zona Norte, primeiro romance da série, as incongruências são a matéria do que escrevo! Gosto de testar até onde o escritor pode ir nas mentiras e verdades que conta. Por exemplo, no Zona Norte, faço um rio, o Cabuçu, correr na direção da fonte, não da foz, mas leitor nenhum reclamou. Com relação a eventos possíveis de serem averiguados historicamente, procuro construir um quadro convincente, mas se alguém quiser fazer o check list, perceberá, em alguns, um certo, mesmo sutil, deslocamento, enquanto outros estão simplesmente fora do lugar. Também até aqui ninguém reclamou disso.

P: Com relação a esse particular, então, o que o leitor pode esperar.

J: Mais do mesmo, porém, mergulhando no desafio à aritmética e não poupando, mesmo, o absurdo.

P: Com assim?


J: Em alguns momentos, o leitor é prevenido por personagens, aberta, claramente, de que não se deve confiar demais em narrativas cujas peças não se encaixam. Então, faço simplesmente uma brincadeira com o leitor, espécie de jogo dos erros: monto um capítulo – esse que lerei na Bienal – muito calcado na história, apoiado em depoimentos e pesquisa bibliográfica (mas profundamente humano, emotivo, mesmo cruel de tão pungente – e aqui a opinião não é só minha, mas também a daqueles para quem o li) em que a aritmética é simplesmente jogada às favas. Qual o resultado?

P: Sim, qual o resultado?

J: O resultado é que todos que leram ou me ouviram ler esse episódio se emocionaram muitíssimo, inclusive o leitor crítico. É comum, quando o leio, as pessoas chorarem. Eu mesmo, quando o escrevi, subi diversas vezes do porão de casa para tomar água na cozinha para me refazer antes de retomar a escrita, a história do velho Ocíbio me emocionou e se escreveu através de mim em uma noite, das 19 às 23 horas, num só fluxo, que inclusive preservei na forma da escrita, em que as vozes se atropelam para ir de Madri a Gibraltar em noventa e seis anos de vida de um giramundo.

P: Mas e quanto à aritmética?

J: Pois é, joguei às favas, mas ninguém, ninguém percebeu. E é tão claro que me espanto, pois é uma espécie de piada que passou despercebida. Mas isso não ocorre só nesse capítulo: a vida em São Paulo não tem pé nem cabeça. Se formos buscar incongruências a cada passo que damos por nossas ruas, chegamos à conclusão de que esta cidade é impossível. No entanto, todo dia abrimos nossas janelas e lá está ela, essa imensa cidade incongruente, com seus habitantes que já fizeram como eu há muito: atiraram às favas a coerência para viver melhor.

P: Então, pode-se dizer que a incongruência é uma espécie de personagem dessa série?

J: Não, personagem, não. Ela compõe fortemente o clima que envolve tudo: personagens, deslocamentos temporais, cenários, enredo, fatos particulares e eventos gerais, intencionalidades… Ela faz parte dos diálogos, dos discursos. Cabe ao leitor decidir, ou talvez sentir, até que ponto esses diálogos e discursos são merecedores de crédito, mesmo quando uma personagem, avisando que as peças não encaixam, elas realmente não se encaixam [aqui o autor dá uma sonora gargalhada].

P: Quer dizer que Zona Sul busca emocionar, fazer o leitor verter lágrimas por sobre as incongruências da vida…

J: Não sei se da vida, mas dos discursos, seguramente. Mas não apenas chorar, porque não escrevi um romance para isso, ou não somente para isso. Há espaço, não pequeno, para o humor, como na vida: nem sempre se está para lágrimas, nem sempre para o riso.

P: Como amarra esse mar de incongruências?

J: Neste romance, especificamente, de duas maneiras. A primeira, como tem de ser, literariamente, pondo o efeito estético, de convencimento por meio das palavras, no centro do espetáculo: toda ciência e arte mobilizadas, servem ao propósito de puxar o leitor para mundo dos personagens: não importa o quão incoerente, incongruente, impossível seja esse mundo, o que importa é que funcione enquanto poder de encantamento por meio da palavra artística. A segunda maneira de amarrar isso tudo, melhor seria dizer não “amarrar”, mas “libertar” isso tudo, é a opção que fiz de empregar eventos históricos e contemporâneos, por um lado, e as artes plásticas como pano de fundo, de outro. De posse desses recursos: o encantamento por meio da palavra escrita, os eventos de inegável comprovação histórica e a placenta oferecida pelas artes plásticas construí, ou melhor, literalmente pintei e bordei – acho que sem querer fiz um trocadilho [novamente uma gargalhada descompensada].

P: Com relação às artes plásticas…

J: Comparece na quase totalidade dos capítulos. Mas para aqueles em que a citação é mais explícita, há no livro, logo no início, uma tábua de obras de artes plásticas, para maior comodidade do leitor.

P: E quanto aos eventos históricos empregados para corroborar os absurdos e incongruências de efeito estético?

J: Há dois centros, um afastado no tempo, no início do século 19, na Espanha ocupada pelos franceses, e diz respeito à imigração espanhola para o Brasil. O outro centro, contemporâneo, é constituído pelas obras da linha lilás do metrô de São Paulo, sob a estátua de Borba Gato.

P: Essa que tem sido objeto da imprensa, por causas dos sucessivos escândalos?

J: Isso.

P: E esses escândalos, são abordados?

J: Quem ler o romance descobrirá que há mais coisas debaixo daquela estátua do que a imprensa tem conseguido esconder.

Fonte: http://eraumaveznomeubairro.blogspot.com.br/