Trabalhadores: o perfil dos indesejáveis

Sandra Maria Seabra Chemin está há mais de 30 anos na coordenação do curso de Nutrição da Faculdade São Camilo, tido como um dos melhores do país. Chemin, referência unânime entre alunos, professores e nutricionistas do país, acaba de ser sumariamente demitida depois de declarar em uma entrevista para publicação interna: “Não me vejo em outro lugar, vou me aposentar aqui”.

Por Christiane Marcondes*

Logicamente a sorrateira demissão de coordenadora e mestra é um fato a ser repudiado por colegas, mas também é emblemático: muito profissional, na maturidade da carreira, recebe o tratamento utilitário de um objeto e é dispensado, para susto de alguns e silêncio de muitos.

Faz lembrar aquele raciocínio machista, na verdade uma piada: por que ter uma de 40 se é possível ter duas de 20? A demissão de um veterano significa, para o empregador, ganho em economia na folha de pagamento e em controle, porque os sêniores ganham mais e exercem a crítica com conhecimento e desenvoltura.

A professora Sandra Chemin, ao longo das três décadas à frente do curso de Nutrição, certamente foi uma das principais responsáveis pela construção da credibilidade, pela conquista de inúmeros prêmios e pela ótima avaliação da faculdade em nível nacional. Quanto a Faculdade lucrou com isso? Difícil dizer, já que não há bola de cristal que revele esse bastidor, mas é fácil dizer quanto Sandra ganhou: nada além do salário mensal.

Sempre pronta a atender alunos, professores e jornalistas, Sandra Chemin formou centenas de alunos ao longo desses anos e conquistou uma reputação que ultrapassa as fronteiras da faculdade e mesmo as do país. Ela é jovem, comunicativa e, entre muitos outros livros, publicou o primeiro de referência da área, até então os importados predominavam na bibliografia escolar.

Gostar do ser humano e de ser humano

Na época da publicação do livro, 2007, um grupo de entusiastas do trabalho de Sandra publicou em uma rede social: “Após anos recorrendo às obras estrangeiras, temos uma obra 100% brasileira!” Referiam-se a “Tratado de Nutrição, Alimentação e Dietoterapia”, de Sandra M. Chemin S. da Silva e Joana D’Arc Pereira Mura.

Conforme especialistas, a obra foi pioneira na literatura nacional, abordando amplamente todo o quadro nutricional da população brasileira com ênfase não somente nos alimentos, mas também em dietas, hábitos alimentares e doenças típicas de nosso país.
 
A demissão de Sandra já mobilizou os alunos, que escreveram um documento a ser entregue anesta sexta-feira (29) ao diretor da faculdade. E criaram um ato anunciado no Facebook, convidando a imprensa a cobrir a entrega de um abaixo-asssinado, também em trânsito pela rede. 

Espera-se que, de imediato, pelo menos 300 alunos e professores coloquem suas assinaturas no abaixo-assinado. Certamente pais e nutricionistas também se juntarão ao movimento, que tende a crescer.
 

Uma reflexão: os profissionais na era dos descartáveis

É muito triste ver como a nossa sociedade trata os mais experientes, ela exclui e troca pelo novo sem pudores. Grandes nomes em seus segmentos de atuação morreram profundamente decepcionados, é o caso de Cláudio Abramo. E até mesmo Perseu Abramo, que, com currículo mais longo que os seus quase 60 anos, procurava empregos nos corredores da Abril nos anos 1980. O pior é que os estreantes na lida ficam como cego sem cão-guia, vão se virando e, algumas vezes, se queimando cedo na profissão por falta dos mentores.

Isso me lembra o belíssimo filme “Lixo extraordinário”, impecável, dá para fazer uma analogia do título dele com a situação dos descartados: eles estudam, se aprimoram, tornam-se sábios ao longo de anos de dedicação a uma profissão que lhes apaixona, para reduzirem-se, ao final, a  “lixo”, de modo algum extraordinário. Seguem direto para o exílio do esquecimento a não ser que alguém revolva a terra onde são enterrados e traga esses personagens de volta à cena cultural e acadêmica.

E que dizer dos jovens à beira do caminho, fora do mercadp? Vejo pessoas excepcionalmente criativas excluídas da tribo dos empregáveis e percebo, com pesar inconsolável, que as empresas preferem os modeláveis e burocráticos. Os quais, diga-se de passagem, podem até ter talento, mas talento tem que ser lapidado com a experiência, e se esses se entregam ao cumprimento de horários e tarefas, não terão tempo para se desenvolver verdadeiramente como profissionais e seres humanos. Um dia a vida cobra essa conta, como bem demonstra o livro “O Retrato”, de Gogol.

Melhor evitar essa amarga cobrança, garanto, é urgente repensar como são tecidas as relações no ambiente de trabalho, oportuno retormar a etimologia da palavra competência: “aquele que gosta e busca o saber com outros”. Não é um usurpador ou ganancioso pelo poder.

Herança maldita para os jovens 

Esta breve história tem muitos desdobramentos e ângulos, infelizmente nem todos cabem aqui. Mas farei uma última colocação: em quantos locais de trabalho um jovem ou mesmo um iniciante não amadurece porque fica realizando serviços que não estimulam nem aumentam sua bagagem?

Acredito que a luta dos trabalhadores é imensa e envolve grandes injustiças , mas talvez caiba uma atenção a essa truculência cotidiana, aos chefes que praticam assédio moral sob forma de humilhações respaldadas na hierarquia, com régia burocrática minando a criatividade e consciência crítica e, pior, a própria harmonia do relacionamento.

Esses pessoas submetidas a esse tipo de tratamento, tornam-se autômatos, identificados com trabalho, salário e benefícios, possuem baixa auto-estima e certamente, na reta final da chegada, quando acumularem anos e fidelidade sem frutos, serão dispensados sem explicação nem agradecimento, aposentando-se com dúvidas sobre o sentido da vida e talvez doenças de origem laboral, embora não sejam assim consideradas, como depressão, problemas cardíacos ou algo mais grave.

Tristeza adoece, o local de trabalho é onde vivemos a maior parte da vida, tem que ser saudável! Essa luta é do povo, sindicatos e partidos, responsáveis pela consolidação de uma sociedade mais sábia e respeitosa, na qual a hierarquia existe, mas entremeada à cumplicade em um ambiente colaborativo, que estimule vocações individuais e prazeres coletivos.

*do Portal Vermelho