Movimento estudantil faz a Primavera em Quebec

Todos os dias, às 20h, as ruas de Montreal, capital da província do Quebec, no Canadá, ecoam o mesmo som. Panelas em mãos, as pessoas saem em suas varandas para batucar contra as últimas medidas do governo do primeiro-ministro, Jean Charest, do Partido Liberal. Inspiração chilena contra o governo Pinochet, os panelaços noturnos reúnem milhares de pessoas. 

Protestos quebec

A exemplo da receita praticada em outros países tidos como ricos em resposta à crise, o governo canadense se empenha em fragilizar um dos mais consolidados redutos de bem-estar social do mundo.

Em março do ano passado, o governo provincial anunciou seu Plano de Financiamento das Universidades Quebequenses e, com ele, um aumento de 75% na taxa de matrícula das universidades. O valor total pago para fazer o equivalente ao bacharelado brasileiro passou de 2.168 para 3.793 dólares canadenses por ano. Os estudantes se manifestaram nas principais ruas comerciais da cidade, ocuparam bancos e o gabinete da então ministra da Educação, Line Beauchamp.

Em fevereiro deste ano, associações convocaram assembleias e anunciaram greve, e a adesão só vem crescendo. Segundo a Classe, sigla em francês de Coalisão Ampla de Associações pela Solidariedade Sindical Estudante, a maior das três federações estudantis, até meados de junho 154.163 colegiais e universitários não frequentavam as aulas em sinal de protesto.

O símbolo adotado como repúdio ao aumento foi um pequeno quadrado vermelho, o carré rouge, preso à roupa com um alfinete. O adereço toma conta das ruas: nas roupas, em bandeiras flamejando nas sacadas, em cartazes nas janelas e postes. Em 22 de março, 200 mil pessoas tomaram as ruas de Montreal, maior cidade do país, multidão inédita na história de protestos da província. A notícia ganhou o mundo e o movimento ficou conhecido como Primavera Érable, nove de um árvore canadense cuja seiva é matéria-prima do xarope de maple – e trocadilho associado à Primavera Árabe.

A estudante de Direito Émilie Bretan-Côté, da Universidade do Quebec em Montreal (UQaM), afirma que tradicionalmente os estudantes fazem greve quando um governo anuncia medidas que os atinge. “Mas esta é a maior da nossa história. Temos esperança e vamos continuar a luta, mas se o governo ganhar, vai ser horrível.”

Para a porta-voz da Classe, Camille Robert, a proposta do governo é inadmissível: “O governo vai aumentar a contribuição dos estudantes depois de implementar várias medidas fiscais desnecessárias, como baixar impostos dos ricos e de grandes empresas e subvencionar coisas como um estádio para um time de hóquei”, critica. “Aumentar a matrícula é uma decisão política. À medida que a crise do capitalismo se multiplica, é nos serviços públicos que os governos fazem cortes em primeiro lugar. E isso está acontecendo aqui.”

O governo alega que o novo plano visa a melhorar a qualidade do ensino. Em negociações com os estudantes, propôs parcelar o aumento de 1.625 dólares canadeses em sete anos em vez de cinco (corrigido pela inflação, o acréscimo saltaria de 75% para 82%). Mesmo com a proposta recusada pelos estudantes, Jean Charest manteve o plano.

Na segunda semana de junho, o ministro das Finanças, Raymond Bachand, reiterou que não cederá aos protestos. “A questão da matrícula é de justiça social versus visão fiscal (…) E um grupo de estudantes, a Classe, não quer nada além de um congelamento da taxa como um caminho para a gratuidade escolar. Isso não é o que escolhemos como governo”, afirmou, demonstrando tratar-se de questão política, e não de caixa.

“Na última negociação, os estudantes propuseram ao governo o congelamento do valor para os dois próximos anos, diminuindo o crédito (dedução) no imposto de renda. No final, isso não custaria nada ao governo. Mesmo assim ele decidiu manter o aumento, por opção política”, diz o economista Oscar Calderon, do Instituto de Pesquisa em Economia Contemporânea. Calderon observa que quanto mais o preço da matrícula sobe, maior é a evasão. “A cada 1.000 dólares a mais, há uma diminuição de 2% na frequência. No final das contas, isso resultará em uma sociedade menos instruída no futuro.” Camille, da Classe, concorda: “Mesmo que a gente encontrasse milhões de dólares para financiar de outra forma as universidades, sem fazer a população pagar, ele recusaria, porque trata-se de algo ideológico”.

Eu desobedeço, tu desobedeces…

Como o movimento foi tomando cada vez mais força, Charest reagiu com uma Lei Especial, aprovada em maio, o que aumentou ainda mais o rebuliço social, por ferir o direito de greve, de associação e manifestação. A lei obriga, por exemplo, que manifestações com mais 50 pessoas sejam submetidas a autorização policial, com data, horário e itinerário das passeatas comunicados com oito horas de antecedência.

O tiro saiu pela culatra. O que antes era protesto estudantil cresceu e tomou de assalto uma sociedade que preza a liberdade de expressão e de manifestação. Estudantes, pais com bebês e crianças, idosos, portadores de deficiências, militantes sindicais, feministas e desempregados engrossaram o caldo dos descontentes e fizeram da passeata do centésimo dia de greve, em 22 de maio, a maior manifestação já realizada no Quebec, com 250 mil pessoas.

Munida de colher e tampa de panela, Sondrine Rhodius esbravejava contra os policiais que impediam os manifestantes de seguir o trajeto: “Vocês não podem defender esse governo! Tenho orgulho desses jovens! Sou mãe de quatro crianças e estou no movimento para que meus filhos possam desfrutar de escolas públicas, se não gratuitas, acessíveis”, desafiava a belga Sondrine, há 18 anos em Montreal.

A repressão também aumentou. Até meados de junho, havia 2.900 pessoas presas e/ou acusadas durante as manifestações. O advogado Denis Poitras, defensor de 900 acusados, nunca viu situação similar. “A gente vive um dos períodos mais sombrios da história. Existem inúmeros casos de prisões arbitrárias. Nunca as pessoas desafiaram tanto uma lei. A brutalidade policial não é a primeira vez que vemos, mas agora, com os celulares que filmam e jogam as coisas na internet, temos mais provas”, afirma Poitras.

Alunos de Direito implicados no movimento decidiram criar um Comitê Legal da Greve, ainda no ano passado. A estudante Émilie Joly auxilia advogados experientes como Poitras. “Quando formamos o comitê não prevíamos de forma alguma o confronto que iríamos ter. Hoje ajudamos na defesa de pessoas acusadas criminalmente, das que receberam um auto de infração para que possam contestar multas e apelamos contra as ordens da corte para pôr fim à greve”, conta.

O clima pesou na ocasião do Grande Prêmio de Fórmula 1, um dos eventos mais importantes para o turismo de Montreal. A força policial foi redobrada entre os dias 7 e 10 de junho. Para não “fazer feio” diante dos turistas e da imprensa internacional, o serviço municipal de polícia não hesitou: no metrô, revistou pertences de quem portava o broche vermelho, exigiu que o acessório fosse descartado e prendeu 34 pessoas na saída da estação Jean-Drapeau, que dá acesso ao circuito Gilles Villeneuve.

Uma jornalista e um fotógrafo do jornal Le Devoir foram abordados mais de uma vez no metrô enquanto seguiam rumo ao autódromo. Lá, foram detidos e interrogados porque usavam o símbolo do movimento e só foram liberados quando os policiais se deram conta que eram da imprensa. Mesmo assim, foram escoltados até a estação central de metrô e só ali puderam circular livremente.

Casos como esse levaram manifestantes a mudar de estratégia. Em vez de se arriscar nas manifestações de rua, ainda numerosas, mas cada vez menores a partir de meados de junho, começaram a se formar grupos comunitários para pensar soluções criativas contra a repressão. Outros, mesmo sob forte ameaça, decidiram manter o combate nas ruas.

O estudante de Filosofia Fréderic Côté-Boudreau e a aluna de Direito Isabelle Sawyer, da Universidade de Montreal, fazem parte deste grupo. Eles protestavam juntos em frente ao hotel onde Alan Greenspan, ex-presidente do Federal Reserve, o BC americano, discursava no Fórum Econômico Internacional das Américas, em 13 de junho. “A esquerda quebequense, a partir da greve dos estudantes, se uniu contra as políticas neoliberais do governo”, bradou Frédéric. “Por que fazer mais pelos ricos enquanto os pobres estão cada vez mais pobres? Esse não é o projeto de sociedade que queremos para os nossos filhos”, emendou Isabelle.

O governo demoniza o movimento. Em 8 junho, em discurso na Assembleia Legislativa, a ministra da Cultura e das Comunicações Christine St-Pierre, declarou: “A gente sabe o que quer dizer o carré rouge. Quer dizer intimidação e violência”. Poucos dias depois, 2.600 pessoas do meio artístico quebequense fizeram uma carta de repúdio exigindo da ministra uma retratação.

Em defesa do símbolo, um grupo de estudantes promoveu no dia 14 de junho uma tatooaço, para que o quadrado vermelho sobreviva à primavera. Mathieu Séguin Gionet, 19 anos, eternizou o carré em seu antebraço. “É símbolo de um movimento histórico, que vai ficar no nosso coração para o resto da vida. Por isso, essa é a minha primeira tatuagem. Associá-lo à violência foi o meio que o governo encontrou de manipular cidadãos mais receosos”, disse Séguin, aluno de Ciências Humanas.

Entenda o cenário

Quebec é maior das dez províncias do Canadá e tem a segunda maior população, formada sobretudo por descendentes de franceses – o restante do país é de origem britânica. O idioma, a cultura e sua organização social fazem de Quebec um país dentro do país. O ensino é gratuito da pré-escola ao ensino médio. As universidades são subvencionadas pelo Estado e os alunos pagam matrícula e taxas administrativas.

O aumento da matrícula foi apenas uma das medidas polêmicas adotadas por Jean Charest, no governo da província desde 2003. Ele também promoveu aumentos do ̶imposto estadual, da tarifa de eletricidade, do preço do combustível e criou taxa para a saúde pública, além de instalar um parque industrial gigantesco em áreas povoadas por povos tradicionais ao norte do estado.

Parece não faltar motivos a impulsionar a multidão de descontes. “A gente ganhe ou perca essa batalha, haverá um ganho social. Muitas pessoas que não se envolviam mais politicamente voltaram a se manifestar. Isso implicará no governo, no sistema eleitoral e na participação dos cidadãos”, avalia a líder estudantil Camille Robert.

Ao jornal Le Devoir, Alain Badiou, líder do movimento de maio de 1968 na França, resumiu a situação: “É uma resistência que se contrapõe a um fenômeno mundial que quer que o modelo de empresa seja aplicado a todas as atividades humanas. Esse ponto de resistência mobiliza um debate de grandes amplitudes, que diz respeito a todos e cujo fim não é previsível. Mantenhamos todos os olhos no Quebec”.

Fonte: Revista do Brasil