MK Bhadrakumar: China desdenha a “abertura” dos EUA

Há vários modos de interpretar a visita do Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, Thomas Donilon, a Pequim essa semana (de 23 a 25 de julho) – a primeira visita desse alto servidor da Casa Branca nos últimos cerca de oito anos.

Por MK Bhadrakumar*, no Indian Punchline

Uma dessas interpretações é que Donilon tenha sido escalado pelo presidente Obama para a função de bombeiro, para apagar os incêndios provocados pela secretária de Estado Hillary Clinton, que “corre de um lado para outro para conter a China” como uma espécie de John Foster Dulles fora de época — como se lia em comentário no jornal People’s Daily. [1]

O comentário obrigou Washington a relembrar a crise dos mísseis cubanos em 1962 e a considerar a questão de por que a China não mereceria “o devido respeito (…) por seus interesses e preocupações na região do Pacífico Asiático”. Alertava que os EUA estão provocando a China, “já próximo do limite do intolerável em questões relacionadas a interesses chineses cruciais, como a disputa pelas ilhas Diaoyu [com o Japão] e o Mar do Sul da China – atitude contraproducente e perigosa”.

“O enterro intencional do sistema de Ialta pode destruir os pilares legais do sistema de poder existente no Leste da Ásia; sem ele, muitas questões históricas nunca resolvidas converter-se-ão em novas disputas, o que provocará dano grave a interesses de China, Rússia e também dos EUA”.

Como se não bastasse, os EUA cultivam ambições “muito além de sua capacidade real e podem sofrer outro contragolpe importante” semelhante ao que sofreram na Guerra da Coreia e na Guerra do Vietnã. Como manifestação, na recepção ao alto funcionário visitante e enviado chave de Obama, o comentário não poderia ter passado despercebido.

Mas fato é que a parceria China-EUA é “Suplício de uma saudade” [2]. Apesar do tom azedo e da irritação que lhe provoca o movimento de “pivô”, de Obama, na direção da Ásia, a China continua a ser o maior detentor de papéis da dívida dos EUA: o total já chega agora a US$ 1,17 trilhão de dólares, depois de a China ter comprado mais US$ 25,6 bilhões desses papéis, só em dois meses – maio e junho.

A China admite que não deveria estar pondo todos os ovos numa só cesta, mas, mesmo assim, parece estar fazendo exatamente isso. As reservas chinesas em ouro equivalem a apenas 1,6% do total das reservas. Claro, funcionários chineses insistem que a preferência pelo dólar dos EUA é questão puramente econômica — e explica-se pela segurança, liquidez e rentabilidade da moeda [3]. O caso é que não há economia sem consideração à política – ou vice-versa.

Outra vez, a economia chinesa está respondendo às medidas governamentais de estímulo, e há boa chance de a atividade econômica recomeçar em breve a nadar para cima. Enquanto isso, as economias europeias bracejam (inclusive a economia alemã), mas parecem destinadas a longo período de vacas magras. O que, por sua vez, torna o mercado chinês vitalmente importante para as exportações dos EUA. [4]

Fato é que, nem bem Donilon chegou a Pequim, chegaram ao mundo estonteantes notícias do Canadá, onde, na 2ª-feira, a empresa estatal China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) comprara as instalações da Nexen em Calgary, por US$ 15,1 bilhões. Em versão resumida: as reservas de petróleo em areias canadenses, as quais, por ironia, o Big Oil dos EUA muito fez para desenvolver durante 50 anos, estão agora ao alcance da China, acompanhadas da alta tecnologia canadense. Os depósitos de petróleo canadenses são a terceira maior fonte de cru extraível do planeta.

Conforme dados divulgados pela rede Bloomberg, [5] a China gastou US$ 53,4 bilhões na compra de campos de petróleo e gás e de empresas canadenses; contra US$ 30,8 bilhões das empresas norte-americanas. Pequim anunciou que instalará em Calgary um dos quartéis-generais do braço internacional da estatal CNOOC e seu centro operacional de supervisão das empresas chinesas na América do Norte e na América Central. Os políticos na colina do Capitólio estão lívidos: começam a temer que os EUA não estejam compreendendo corretamente o roteiro do filme. [6]

Curiosamente, no mesmo dia Pequim anunciou também o estabelecimento da cidade de Sansha (e uma consequente base militar para resguardar seus interesses no Mar da China e cercanias – nota da redecastorphoto), na ilha Yongxing, na província de Hainan, extremo sul do país. [7]

No encontro com Donilon, na 3ª-feira, o presidente Hu Jintao destacou que Washington e Pequim devem “respeitar-se mutuamente, cuidar mutuamente dos interesses respectivos e tratar as questões sensíveis de modo atento, cuidadoso, adequado e estável”. E que, como sempre ficou decidido que seria feito, em inúmeros encontros sino-americanos, os dois países devem explorar “o modo de desenvolver um novo tipo de relacionamento” [8] que seja cooperativo e baseado em respeito mútuo para mútuo benefício. Donilon respondeu “Nós [EUA] entendemos que nosso relacionamento é definido pela cooperação prática”.

Um dos objetivos de Donilon era fabricar alguma “cooperação prática” com vistas à questão síria. Houve pistas, encontráveis em toda a mídia chinesa, de que a Síria seria um dos temas das conversações. Mas dia seguinte, imediatamente depois da partida de Donilon, o jornal estatal China Daily [9] publicou ataque candente contra os planos dos EUA de promover intervenção “pelo molde da intervenção na Líbia”, também na Síria. O comentário do China Daily dizia e repetia que a possibilidade de haver qualquer “cooperação prática” entre EUA e China, na Síria, hoje, no pé em que estão (e permanecem) as coisas é virtualmente zero, nihil.

Notas dos tradutores
[1] 23/7/2012, People Daily, Pequim, Tian Wenlin em: “Strategic anxiety” leads US diplomacy astray in Asia-Pacific
[2] Orig. “Love is a many-splendoured thing” Lit. “Amor é a coisa mais deslumbrante”. “Suplício de uma saudade” é o título que recebeu, no Brasil, o filme “A many-splendoured thing” (1955), história de uma paixão tão arrebatadora quanto impossível (ou, no mínimo muito difícil) entre William Holden e Jennifer Jones, em Hong Kong, durante a Revolução Comunista Chinesa (para alguns comentaristas) ou a Guerra Civil na China (para outros). Filme e trilha sonora foram imensíssimos sucessos planetários, e a canção-tema mereceu incontáveis gravações.
[3] 24/7/2012, People Daily, Pequim, em: “US Treasury bonds still China's best choice”
[4] 24/7/2012, Reuters, Steven C. Johnson e Jonathan Cable em: “Europe, U.S. economies struggle as China stabilizes”
[5] 24/7/2012, Bloomberg, Jeremy van Loon em: “Canada Shifts Toward China With $15 Billion Nexen Deal”
[6] 27/7/2012, Reuters, em: “China-Canada oil deal raises political hackles in Washington”
[7] 24/7/2012, Xinhuanet, Hou Jiansen em: “China establishes Sansha City”
[8] 24/7/2012, Xinhuanet, Lu Hui em: “Chinese president emphasizes healthy, stable China-U.S. relationship”
[9] 26/7/2012, China Daily, Zheng Xiwen em: “Right to decide own future”

MK Bhadrakumar* foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.

Fonte Redecastorphoto. Traduzido pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu