Chilenas lançam o primeiro meio de comunicação feminista do país

"A voz política das histéricas, das santas, das bruxas, das loucas, das putas e de todas as mulheres". Foi assim que as criadoras do portal digital La MansaGuman definiram o primeiro meio de comunicação feminista do Chile. “Sempre sonhamos em ter uma heroína que denunciasse a violência contra a mulher, e que também que nos representasse em outros âmbitos", comentou a diretora do site, Kena Lorenzini.

O portal  foi criado exclusivamente por mulheres e busca revelar os aspectos da desigualdade e da discriminação que a imensa maioria das chilenas sofre, enfrentando também as dificuldades de um país marcado por um duopólio jornalístico que domina o mercado de meios escritos e digitais.

As empresas El Mercurio e Copesa (Consorcio Periodístico de Chile), de propiedade de duas das famílias mais ricas e influentes do Chile, são donas de 90% do que se publica no país, o que faz com que lançar um meio de comunicação progressista e independente não seja uma tarefa simples.

A concentração dos meios se traduz também em um monopólio ideológico da direita, que detém direta consequência nas linhas editoriais, e mais especificamente, nos protagonistas e nas formas de se abordar a notícia. Tendo em vista esse panorama, a economista Gloria Maira Vargas destacou que La MansaGuman "chegou para preencher um vazio importante com respeito aos meios de comunicação e às informações e aos tipos de abordagem ao quais as pessoas têm acesso”.

"Em geral, as mulheres estão ausentes dos meios tradicionais, aparecemos como um detalhe diferente, ou como tema secundário associado à matéria principal, mas os personagens principais quase sempre são homens e a voz das mulheres não está presente. Decidimos que essa era uma grande necessidade que havia que suprir”, explicou Vargas, que é subeditora do novo meio digital.

Em geral, segundo ela, os temas considerados tipicamente femininos são explorados como algo meramente segmentado e “falam das mulheres como se fôssemos um bando de patricinhas cujos problemas nunca serão um tema de relevância nacional”.

"Queremos colocar em debate os grandes temas das mulheres, como a brecha salarial, a segregação do mercado de trabalho, a despenalização do aborto em todas as circunstâncias, assim como os problemas do sistema político que afetam pelo menos metade da população do país e que, portanto, precisam ser observados com essa importância política, econômica e cultural", comentou.

A diretora Kena Lorenzini avalia que "99% dos meios chilenos são dirigidos por homens, seus donos são homens, e por isso mesmo os que escrevem e falam são homens, em pelo menos 85% dos casos". Ela afirma também que o princípio mais radical adotado pela equipe de La MansaGuman é que não haverá protagonistas masculinos nas matérias, "mas não é um portal digital só para mulheres, e sim para todos, porque está inserido em um debate nacional sobre os temas femininos que buscamos promover".

Origem

O nome La MansaGuman surgiu de um termo coloquial chileno de se referir a “uma grande mulher” – “mansa” no Chile é uma gíria que tem o mesmo significado de “baita” no Brasil, e o “guman” é uma deformação chilenizada da palavra inglesa “woman”, que significa “mulher”.

O portal conta com um grupo multidisciplinar de fotógrafas, economistas, advogadas e orientadoras familiares. Seu comitê editorial está composto por escritoras destacadas no cenário chileno, como Diamela Eltit, defensora dos direitos humanos, Ana González, conhecida detidos desaparecidos durante a ditadura de Pinochet (1973-1990), e a dirigente dos estudantes secundaristas Danae Díaz, entre outras.

Também participam a antropóloga mexicana Marta Lamas, a escritora equatoriana Tatiana Cordero e a secretaria geral da União de Mulheres de saarianas da Espanha, Fatma Mehdi, que também integra a direção da Frente Popular de Liberação de Saguia AL Hamra e Río de Oro, mais conhecido como Frente Polissaárico de Liberação.

O financiamento do portal é 100% voluntário. A abertura do site na Internet e até o layout foram financiados pelas doações recebidas. La MansaGuman é "uma aposta jornalística crítica e deslinguada", criada para ser um espaço de afirmação das mulheres, até agora excluídas da agenda dos meios de comunicação tradicionais, afirmam suas criadoras. A ideia é que a pauta informativa ponha em evidencia os espaços onde as mulheres estão presentes, a agenda que as define, o que importa para elas e o quê lhes afeta.

"Requisitos"

Apesar de a censura já ter acabado no Chile, este projeto exige dois requisitos básicos para quem quer fazer parte: ser feminista e de esquerda. "Ser feminista é um orgulho para as mulheres. Algumas ainda não o assumiram, mas se analisamos a história chilena, o fato de que hoje, tanto no Chile quanto no resto do mundo, podemos falar livremente sobre as grandes dívidas da democracia, é graças ao movimento feminista, sobretudo em termos de luta e pressão pelo reconhecimento dos nossos direitos", disse Gloria Maira Vargas.

Ela acrescenta que, por mais que muitos digam que o feminismo não passa de um discurso ultrapassado, “enquanto as mulheres seguirem sendo um grupo subordinado, em termos simbólicos, políticos e econômicos, o feminismo continuará mais vigente que nunca”.

A economista completa dizendo que "se queremos promover um discurso transformador, colaborando com uma nova sociedade mais inclusiva, solidária, e que possa se manter com esses valores e princípios, o feminismo é, evidentemente, uma corrente de pensamento vital, uma proposta capaz de alimentar toda essa transformação".

Sobre a necessidade de ser de esquerda, Lorenzini explica que é o discurso que, para elas, significa justiça de gênero, social e econômica. Vargas enfatizou: "Nós levantamos o punho esquerdo, companheira, somos dessas que pensam que em nosso país está vigente um capitalismo selvagem, que afeta toda a população".

A subeditora defende que os princípios de solidariedade que inspiraram a sociedade chilena em outros momentos se perderam, e que “os cidadãos passaram a ser clientes, e as regras do mercado não determinam somente os rumos da economia mas também as da política e o conjunto de valores".

"Por isso, nós também assumimos nossa iniciativa como um posicionamento político, ligado efetivamente ao discurso que queremos transmitir e motivar, colocar os temas em debate perante a opinião pública", assinalou. Tendo em vista todos esses parâmetros, La MansaGuman pretende ser "a voz política" das mulheres, para terminar com a "invisibilização" histórica à que elas têm estado submetidas.

"Já temos o direito de votar, existem algumas políticas públicas para atender certos casos de violência contra as mulheres, mas convenhamos que nós seguimos sendo um gênero subordinado pelo modelo de sociedade existente, e todas as estatísticas e indicadores econômicos demonstram isso", opinou a economista.

Ela indicou também que "em termos de representação política, em presença no mercado de trabalho, em níveis salariais, nos espaços onde se tomam as decisões nas empresas, nos circuitos culturais, como produtoras de cultura, entre outros, as mulheres estão em lugares francamente relegados a um segundo plano".

"Acreditamos que talvez essa seja a grande dívida da democracia com as mulheres, e que era necessário abordá-la também através de um meio de comunicação”, analisou. O portal La MansaGuman aceita colaboração de diversos tipos, desde intelectuais até sindicalistas, desde suburbanas até empresárias. Ou seja, todas as mulheres terão seu espaço.

Os critérios editoriais "não são rigorosos, mas tampouco são exageradamente flexíveis, buscamos um equilíbrio nesse aspeto", assegurou Lorenzini. E Vargas advertiu que, de agora em diante, as mulheres poderão estar tranquilas, porque "as histéricas, as santas, as bruxas, as putas, todas vão estar na primeira linha sempre".

"A heroína fará tudo o que for possível para que assim seja", concluiu.

Fonte: Opera Mundi