"Internet depende da neutralidade", diz relator do Marco Civil

Está nas mãos de um especialista em processos legislativos uma das tarefas mais espinhosas da Câmara dos Deputados: garantir liberdade e privacidade aos usuários da rede. Relator do projeto do Marco Civil da Internet, Alessandro Molon (PT-RJ) ganhou fluência no vocabulário técnico da rede, mas enfrenta fogo cruzado entre os interesses comerciais que envolvem o tema e a militância aguerrida dos defensores da individualidade.

O parlamentar tem expectativa de que o projeto seja votado ainda nesta semana em uma comissão especial da Câmara, após sete audiências públicas das quais participaram 62 palestrantes de diferentes áreas.

Com a experiência de professor de uma disciplina de processos legislativos na PUC-RJ, afirma que a maior lição foi o método de elaboração do texto: foi construído com a colaboração de usuários da rede, de forma inédita no país. Para Molon, a garantia da neutralidade na rede  é o principal pilar do projeto:

Confira abaixo a entrevista:

Zero Hora: Por que a internet precisa de uma lei?
Alessandro Molon: Precisamos garantir direitos que hoje estão em risco: proteção à privacidade, liberdade de escolha na rede, direito à informação. Além disso, há certas características, como a neutralidade da rede, que precisam ser protegidas.

ZH: Na prática, o que o Marco Civil vai trazer para o usuário de internet?
Molon:  A proteção a direitos como a privacidade dos dados pessoais, a discrição da navegação, a reafirmação do direito à conexão de qualidade, a proibição do bloqueio do acesso à internet por qualquer razão que não seja a falta de pagamento. A intenção é proteger, por exemplo, dados pessoais que hoje alguém fornece a um aplicativo de internet e podem ser vendidos como mercadoria a terceiros.

ZH: Por que o marco não trata de questões como pirataria e crimes digitais?
Molon: A concepção é que seja uma espécie de Constituição da internet, de carta de direitos. É uma espécie de lei guarda-chuva, a partir da qual vão surgir outras, inclusive que definam crimes de internet. Mas não é um marco criminal, é civil.

ZH: Como o senhor responde a críticas de delegados de que o Marco Civil pode tornar a investigação de crimes cibernéticos mais lenta?
Molon: Não consigo entender em que medida o Marco Civil pode atrapalhar investigações, ao contrário. A exigência da guarda de logs por um ano, que vai estar na lei, é uma garantia. Entendo que o marco colabora de maneira equilibrada e constitucional – cuidadosa com os direitos e garantias individuais – com as investigações criminais. Claro que é preciso limites, como a exigência de ordem judicial para ter acesso a informações, como nas comunicações telefônicas.

ZH: Por que o texto exime serviços de internet como portais e blogs da responsabilidade sobre o conteúdo publicado por terceiros, a menos que haja ordem judicial contrária, um ponto polêmico?
Molon: Nós queremos garantir liberdade de expressão. Não queremos que o meio seja responsabilizado pelo mau uso feito por um usuário. Seria como processar os Correios por terem enviado uma correspondência com conteúdo ilegal. Além disso, poderíamos acabar chegando à regra geral de remover o conteúdo toda vez que se recebesse notificação. Cabe ao Judiciário determinar o que deve ser removido, e não a um provedor de internet.

ZH: Como vai funcionar a exigência às empresas de excluir de seus arquivos todos os dados pessoais do usuário, se solicitado, quando o cadastro for encerrado?
Molon: Hoje, quando você pede a exclusão do seu perfil, o material fica indisponível, mas não é excluído, continua sendo guardado por terceiros. Estamos dando ao usuário o direito de dizer ao serviço que apague tudo ao término da relação entre eles. Para isso, o usuário precisará requerer a exclusão: pode ser por notificação, e-mail, carta. Desde que guarde alguma prova para depois eventualmente acionar quem descumpra esse requerimento, mas não precisa ser por ordem judicial.

ZH: Existe algum outro país do mundo em que o usuário tenha esse direito?
Molon: Não. Entre outras, essa é uma das razões pelas quais o Marco Civil está sendo considerado, por especialistas, o melhor projeto de lei em tramitação no mundo sobre internet. Não há outro país que garanta tantos direitos aos usuários, que proteja a internet como o marco civil, ainda que não seja perfeito.

ZH: Qual detalhamento que se pode atingir para que a regra não se torne rapidamente obsoleta?
Molon: Esse é um dos grandes desafios. É uma lei de princípios, de garantias. Não define tudo na internet e nem esse é o objetivo. Depois virão outras.

ZH: Qual foi seu maior aprendizado sobre a natureza da internet?
Molon: Foi entender quanto é essencial a neutralidade da rede para o futuro da internet. Mas acho que o Marco Civil também será um marco no processo legislativo brasileiro. Aprendemos muito sobre como a participação pode ser aproveitada na produção de uma lei boa para o país. Isso foi um grande aprendizado: como dá para usar a internet para fazer uma lei boa para o país.

Fonte: jornal Zero Hora