Fonseca Neto: Cotas, mais avanços

Uma das infames distorções no processo educacional brasileiro pode ser exemplificada na compra de vaga em universidade pública e gratuita, por egressos da escola básica privada e paga, em geral, empresa de treinamento para tal fim.

Assinale-se que, assim, a universidade pública qualificada constitui um bônus a mais que o conjunto da sociedade confere aos abastados, cujos filhos são treinados a preço de ouro para entrar na universidade estatal, boa e gratuita.

Agora surge uma lei garantindo metade das vagas das instituições federais de ensino superior em todos os cursos para estudantes oriundos do Ensino Médio público, além das já conhecidas cotas para negros etc., afirmadas em longo debate, inclusive no STF. Trata-se de um avanço e de abertura de horizontes de muita esperança, neste Brasil, tão desigual, que condenou historicamente a maioria de sua gente à exploração mais vil,servindo a uma parcela privilegiada que não hesita em ferir de morte a causa da humanidade.

O fato desencadeou uma chiadeira geral dos socialmente privilegiados, em geral revelando arraigados preconceitos contra os empobrecidos, os que se valem do ensino público básico. Por quê? O argumento central deles é de que as universidades federais perderão qualidade com o ingresso dos estudantes vindos da rede pública, atolada em reiterado “fracasso”. Sua presença desqualificaria o nível superior das públicas, hoje muito melhor que o privado.

A propósito, vejo dizerem que o futuro do Ensino Superior federal será o do Ensino Médio público de hoje, que ontem, quando a chamada classe média tinha lá seus filhos, seria de qualidade superior à de agora. Também dizem que “primeiro” é necessário fazer ensino básico de qualidade para os pobres e depois garantir a eles ingressar em bons cursos superiores. Dizem mais que muitos entrarão e desistirão por falta de base para acompanhar cursos etc. Isso é a versão adaptada do cacoete surrado por séculos: “adie-se a Abolição porque eles não sabem ser livres”; “cresça primeiro o bolo, depois se o reparta”; na reforma agrária, “prepare-se o futuro dono do lote e só depois se lhe conceda a terra …”.

Considero essa reserva de vagas um avanço e a contraprova disso é a intensidade das reações do elitismo contrárias a elas,sem querer abrir mão de naco nenhum de seus privilégios, garantidos pela subtração dos meios que deveriam servir a todos, segundo os tão reiterados – e esquecidos – princípios de justiça distributiva. Avanço, digo, porque acessarão a boas universidades milhares de pessoas e famílias que, sem essa janela de oportunidades,reservariam seus últimos tostões para garantir a realização da Educação Superior em cursos pagos.

Nada mais preconceituoso que esse discurso da “competência”. Mas por que mesmo os “competentes” são os socialmente privilegiados? Coincidência? E o que é competência? O que é educação/formação de qualidade? A adoção dessa política pública de ações afirmativas tem ensejado, entre mais, pautar o debate em torno dessas questões. Incrível é que a própria universidade é que parece menos afeita a discuti-las, para além dos limites e interesses corporativos imediatos de sua segmentação. Nesse sentido, vejo a reação da Andifes – entidade dos reitores das Federais –sobre a matéria, brandindo a “autonomia universitária”, até mesmo alegando que o Congresso Nacional estaria ferindo a Constituição ao definir a política de cotas, que, para alguns, seria assunto da economia interna de cada universidade. Tenho outra visão disso: é assunto interno de cada instituição, mas é assunto ainda mais interessante para as parcelas sociais excluídas da própria universidade até hoje. Anda meio sem credibilidade o chamado Parlamento, e até organismos tipo STF, os quais, todavia, nessa matéria, acertam.

Mas seria possível mudar um quadro de exclusão tão grave com uma ou outra lei de cotas? É um caminho já timidamente ensaiado nos primeiros passos dados na Uerj, UnB, Uespi, Ufpi: qual avaliação? Cabe, no movimento social, que se requalifique o processo dessa luta, no âmbitodo combate maior às desigualdades sociais. E somente haverá proveito se cumprida a tarefa imprescindível: seja assegurada a Educação Superior de qualidade nas universidades públicas.

*Fonseca Neto, professor da Ufpi.

Fonte: Acesse Piaui