11 de setembro: a virada à direita nos Estados Unidos

O Patriot Act, de George Bush – que continuará em vigor até 2015 – quer transformar os bibliotecários em informantes da polícia, dando ao FBI informações sobre os livros que as pessoas leem ou emprestam

Por José Carlos Ruy

Patriot Act - espionagem

Há um aspecto do agravamento da virada à direita nos Estados Unidos que aprofundou o conservadorismo cuja hegemonia crescia desde pelo menos o governo de Ronald Reagan (1981-1989), do qual pouco se fala. Trata-se da transformação em política de estado, desde a adoção do Patriot Act, da censura e da vigilância sobre a leitura. Essa lei draconiana foi uma iniciativa do governo de George Bush (2001-2009), aprovada em regime de urgência pelo Congresso dos EUA em 26 de outubro de 2001, na esteira da histeria antiterrorista que se seguiu aos ataques contra as Torres Gêmeas, em Nova York, em 11 de setembro de 2001, apenas 45 dias depois daqueles ataques.

A vigilância sobre a leitura de livros e outros escritos foi transformada, naquele país (que é tido como a “pátria da democracia”) numa prática policialesca ao nível de regimes totalitários como a Alemanha nazista, ou dos setores mais retrógrados da Igreja Católica, saudosos da Santa Inquisição, mantida pelo Vaticano desde a Idade Média até 1965, quando passou a ser chamada de "Congregação para a Doutrina da Fé".

O professor francês Jean-Yves Mollier, do Centro de História Cultural das Sociedades Contemporâneas (Universidade de Versalhes) e um dos principais especialistas contemporâneos sobre a história do livro, da leitura e suas circunstâncias colocou a virada censória do governo dos EUA na série histórica da qual ela, corretamente, faz parte. Sua análise fez parte de uma palestra pronunciada em 2011, na Biblioteca Nacional (RJ), que a revista Livro, nº 2, do Núcleo de Estudos do Livro e da Edição, da Universidade de São Paulo, acaba de publicar.

O Patriot Act determina, entre outras arbitrariedades e limitações da liberdades civis, que os bibliotecários dos EUA (de bibliotecas públicas, privadas e escolares) devem fornecer ao FBI e outros organismos policiais a lista das obras emprestadas ou lidas por pessoas que a policia considera suspeitas, sem nada informar aos implicados. Isto é, pretende transformá-los em informantes da polícia, em dedos-duros, pura e simplesmente.

Se, de um lado, esta tentativa coercitiva revela que o ovo da serpente do macartismo continua vivo nos Estados Unidos, ela também iguala aquele país a semelhante comportamento, de cerceamento da leitura e da livre expressão do pensamento, praticado em sistemas não democráticos. Ela é herdeira, por exemplo, do Index librorum prohibitorum, da censura católica, que teve vigência por mais de quatro séculos, entre 1559 e 1966.

Outros exemplos mais recentes são tão violentos quanto este. Mollier lembra, por exemplo, que na França o abade Louis Bethelém iniciou, em 1904, o catálogo Roman à Lire e Roman à proscrire (Romances a ler e romances a proibir), que foi o “livro de cabeceira de todos os educadores do mundo católico até 1945.” Outro abade, Georges Sagehomme, criou em 1931, um Repertoire (Repertório) que listava 16.700 autores e 70.000 romances e peças de teatro proibidos, mantido até 1956. Ele “perseguia o Mal por toda a parte onde ele se escondia e o enxergava evidentemente primeiro nos escritos dos autores ímpios”, diz Mollier. Vigilância que, hoje, a censura do governo dos EUA repete.

Ainda mais recente é a lista que a Opus Dei – uma organização de extrema direita ligada diretamente ao Papa – elaborou, com livros e autores proibidos. A Opus Dei não aceitou a modernização da Igreja promovida pelo Concilio Vaticano II (1962 a 1965), que mudou a Inquisição e acabou com o Índice dos Livros Proibidos. E criou seu próprio catálogo de obras proibidas que, diz Mollier, até 2003 podia ser livremente baixado pela internet. O catálogo relacionava 60.541 títulos, organizados em seis categorias, incluindo autores como Henri Bergson, Umberto Eco, Louis Althusser, Milan Kundera e Pablo Neruda!

Nos EUA, lembra Mollier, a imposição policialesca foi rejeitada pela maioria dos bibliotecários. Várias associações de livreiros, editores e bibliotecários apoiaram o protesto da American Library Association (Associação Americana de Bibliotecas), que lançou uma campanha nacional contra a pretensão do governo e enviou um abaixo-assinado ao Congresso em abril de 2009 exigindo a mudança da lei. Mas a mudança que ocorreu, em 26 de maio de 2011, foi superficial e considerada insatisfatória, mesmo porque o Congresso dos EUA prolongou a vigência do Patriot Act até 1º de junho de 2015. É um tempo durante o qual, acusa a American Civil Liberties Union (União Americana pelos Direitos Civis) o governo manterá o direito de espionar as pessoas que quiser e sobre as quais tiver qualquer suspeita, por arbitrária que seja.

As ditaduras se assemelham e os EUA, hoje, que se pretendem campeões da “democracia”, se transformaram no refúgio da direita e dos conservadores como foram, no passado, a Santa Aliança das monarquias europeias que se opôs às mudanças democráticas no século 19, ou à Alemanha nazista ou a Itália fascista que surgiram para derrotar o socialismo na metade inicial do século 20.