Paulo Kliass: Dilma na ONU; os verdadeiros protecionistas

A tradicional intervenção da representação brasileira na cerimônia de abertura da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) foi recheada de assuntos importantes e polêmicos. Em 25 de setembro passado, a leitura do discurso foi realizada pela própria Presidenta Dilma e respondeu a uma série de pontos estratégicos relativos à inserção de nosso país no complexo jogo da diplomacia internacional.

Por Paulo Kliass*, na Carta Maior

As acusações do governo norte-americano

No entanto, um assunto ganhou destaque nos órgãos de imprensa e nos circuitos que operam na interface da economia com as relações internacionais. Trata-se da reafirmação, por parte de nossa representante máxima, de algumas decisões mais recentes da política comercial brasileira.

Essa postura se deveu a reclamações oficiais emitidas por autoridades governamentais de alguns países, em especial dos Estados Unidos. Ron Kirk, o principal responsável da equipe de Obama para o comércio exterior, havia criticado o governo brasileiro por ter adotado medidas consideradas por aquele assessor como protecionistas, além de prejudiciais ao livre comércio e aos interesses econômicos de seu país.

A resposta brasileira foi firme e objetiva, não se deixando intimidar pelo peso que representa o governo norte-americano no cenário internacional e nem pela magnitude nada desprezível de nosso comércio bilateral com aquele país.

O principal argumento utilizado por Dilma foi relativo às conseqüências negativas, para a nossa economia e as dos demais países em desenvolvimento, provocadas pelas medidas adotadas recentemente pelos países mais ricos. É óbvio que a emergência da crise financeira em 2008 e a sua continuidade até os dias atuais têm causado efeitos desastrosos sobre a realidade social e econômica dos países do hemisfério norte. Dessa forma, é perfeitamente compreensível que seus governos estejam buscando saídas para o difícil quadro em que se encontram. Porém, isso não significa que as demais nações sejam obrigadas a assistir de forma passiva a todo esse rearranjo e a aceitar seus efeitos perversos de forma obediente.

A injeção de recursos dos ricos e a valorização cambial dos outros

A opção de política econômica adotada pelo Banco Central dos EUA (FED) e pela “troika” do velho continente [Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu (BCE) e Comissão Européia (CE)] foi no sentido de salvar as instituições financeiras de seus respectivos espaços econômicos, com o objetivo de evitar um efeito de contaminação em cadeia de todo o sistema capitalista. Isso significou, na prática, a injeção de mais de 1 trilhão de dólares nos mercados financeiros internacionais, ao longo dos últimos anos.

Independentemente das críticas que se possam fazer quanto a essa estratégia adotada pelas autoridades dos países centrais, o fato é que ela possui um importante efeito anticíclico em escala planetária. São valores monetários introduzidos no sistema econômico, operação essa que no jargão do economês é conhecida como “injeção de liquidez”. A intenção é que essa dinheirama toda reanime a economia desfalecida.

No entanto, como os países europeus e da América do Norte estão ainda sob efeito de recessão, com alto desemprego e com reduzido nível de atividade econômica, boa parte desses recursos acabam sendo dirigidos para os países em desenvolvimento, em especial os BRICS (Brasil, Índia, China e África do Sul). Esse movimento tem contribuído para manter uma tendência de sobrevalorização cambial das moedas locais desses países em relação ao dólar norte-americano. Algo parecido ao que temos sentido no Brasil ao longo dos últimos 15 anos: juros internos da Selic na estratosfera, atraindo recursos externos especulativos, sempre em busca de rentabilidade elevada pelo mundo afora. A inundação de nossos mercados internos por esse tipo de moeda externa provoca uma pressão pela valorização artificial do real, uma vez que a “esperteza” do tripé de política econômica recomenda a bobagem da suposta “liberdade cambial”. O necessário controle do fluxo de capitais especulativos ainda é visto como heresia.

O efeito imediato da valorização cambial é a perda de competitividade de nossas exportações lá fora, em particular dos produtos manufaturados e industrializados. Aliás, é por isso que os economistas críticos dessa irresponsabilidade de crença dogmática na taxa de câmbio “livre” sempre alertávamos para a necessidade de alguma intervenção do governo nesse domínio. Infelizmente foram necessárias muitas perdas e muito sacrifício imposto ao Brasil para que as autoridades se rendessem a tais evidências. Apenas para recuperarmos uma memória recente: entre maio de 2007 e maio de 2012, foram 5 anos em que nossa taxa de câmbio esteve quase o tempo todo abaixo de R$2 por dólar. Apenas durante 8 meses, no auge da crise financeira de 2008/9, a cotação subiu um pouco, em função da redução justamente do fluxo do capital especulativo. E até mesmo o nível de câmbio atual – em torno de R$ 2,02 – ainda reflete uma tendência de sobrevalorização, que poderia ser perfeitamente “normalizada” para um nível mais realista, caso o governo adotasse uma política de tributação efetiva sobre o capital especulativo de curto prazo.

Valorização cambial e concorrência desleal

Assim, o fenômeno que ocorre hoje em dia em escala internacional tem mais ou menos a mesma característica. O mundo está sendo invadido por esses recursos em escala trilionária, provocando um efeito de valorização das moedas dos países em desenvolvimento. Aliás, o único país que tem conseguido resistir a tal tendência é a China, pois mantém em seus estoques de reservas internacionais mais da metade da dívida pública norte-americana e adota uma política de intervenção na cotação cambial de sua moeda – o yuan – contra o dólar e o euro.

Essa valorização cambial generalizada resulta em graves conseqüências para o desempenho econômico da maioria dos países que estão fora do eixo dos poderosos – dentre eles, o Brasil. As balanças comerciais dos países periféricos apresentam resultados ainda mais comprometedores, uma vez que suas exportações ficam prejudicadas e suas importações passam a ser mais estimuladas. Caso nada seja feito, as perspectivas são de um aprofundamento ainda maior dos déficits em seu comércio internacional.

Assim, com o intuito de proteger determinados setores de nossa indústria, o governo brasileiro anunciou, no início de setembro, o aumento das tarifas incidentes sobre uma centena de bens importados. As decisões valem para a proteção no interior do Mercosul e foram atingidos produtos de setores como bens de capital, siderurgia, petroquímica e medicamentos, entre outros. Ou seja, ramos de elevada densidade de capital e significativo valor agregado. As alíquotas médias do Imposto de Importação estavam na faixa de 12% a 18% e foram elevadas para 25%. E foi essa mudança que gerou as tais reclamações explícitas de Ron Kirk, além do jogo de bastidores de representantes de outros países.

A resposta de Dilma: a concorrência desleal vem dos ricos

Para responder à acusação de haver praticado um suposto desrespeito às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), Dilma afirmou que o Brasil é que estava sofrendo os efeitos de uma prática desleal de comércio global. Isso porque as decisões das autoridades econômicas do mundo rico têm o mesmo efeito de oferecer um subsídio às suas exportações ou de estabelecer barreiras às suas importações. Ou seja, por via indireta eram esses países que desrespeitavam as regras de concorrência internacional. Em seu discurso, ela pontuou de forma explícita que:

"Os bancos centrais dos países desenvolvidos persistem em uma política monetária expansionista, que desequilibra as taxas de câmbio. Com isso os emergentes perdem mercado (de produtos de exportação), devido à valorização artificial de suas moedas" (…) “Não podemos aceitar que iniciativas legítimas de defesa comercial por parte dos países em desenvolvimento sejam injustamente classificadas como protecionismo”.

Por outro lado, é importante registrar que nem mesmo os parâmetros da OMC foram desrespeitados. Isso porque, apesar do aumento dos impostos, as novas alíquotas ainda estão em patamar abaixo do limite superior de 35% autorizado para tributos de importação sobre produtos industrializados, tal como previsto nas regras da organização.

Em tempos de crise e de dificuldade para retomar as atividades em seus respectivos mercados internos, é compreensível que os governantes dos países mais desenvolvidos apresentem suas reclamações. Faz parte do jogo, inclusive porque dependem politicamente do apoio dos setores e grupos locais envolvidos com tais atividades econômicas. Uma das formas de buscarem a saída para a crise é também aumentarem as vendas para o resto do mundo. E o aumento de nossas tarifas torna esse caminho mais complicado. O relevante, no caso concreto, é o Brasil não se deixar levar pelas broncas recebidas ou pelas lições de “bom mocismo” que nos queiram empurrar goela abaixo.

Retórica liberal e prática protecionista

Afinal, os próprios Estados Unidos e a União Européia são os grandes recordistas de queixas e ações junto à OMC e suas instâncias deliberativas, a exemplo dos antigos e conhecidos subsídios à agricultura e outras medidas protecionistas. O Brasil obteve algumas vitórias importantes nas chamadas “soluções de controvérsia” no interior da organização multilateral, como foi o caso das exportações de suco de laranja e de algodão para o mercado norte-americano. E existem também algumas pendências a respeito das nossas exportações de carnes (frango e boi) e de açúcar para o continente europeu. Em todos esses questionamentos, as decisões têm sido de reconhecer que há medidas protecionistas e de concorrência desleal adotadas pelos governos daqueles países.

De toda forma, a estratégia de ampliação e diversificação de nossos parceiros, bem como a consolidação do mercado com os vizinhos da América do Sul, nos permite uma maior margem de manobra nas estratégias de comércio internacional. A dependência extrema para com o mercado norte-americano foi sendo paulatinamente substituída por uma ampliação da corrente de comércio crescente com novos países. Desde 2009 que os Estados Unidos foram ultrapassados do posto de principal nação parceira do Brasil. A China passou a ocupar esse lugar de maior volume de fluxo comercial – somatório de valores de exportações e importações. Na verdade, talvez as próximas pendências brasileiras a respeito de reclamações contra práticas desleais de comércio internacional venham a ocorrer a respeito das complexas relações com o gigante asiático, que tampouco respeita parte das regras previstas pela OMC. Engana-se redondamente quem tiver a ilusão de que existe algum “bonzinho” atuando nesse jogo pesado de grandes potências, todas elas com algum grau de vocação imperialista.

Apregoar condutas e regras de liberalismo pelo mundo afora sempre foi a marca dos países hegemônicos do capitalismo, em especial os Estados Unidos. E isso vale tanto para governos dominados pelos democratas como pelos republicanos. Mas essa tentativa de doutrinação ideológica pelos 5 continentes quase nunca está acompanhada pela aplicação desses mesmos princípios – ditos “liberais” – em seu próprio território. E o mais grave é que esse descompasso entre “discurso para fora” e “prática para dentro” revela-se ainda mais evidente em épocas de crise econômica e em períodos eleitorais. Então, fica combinado assim: respondemos na lata, mas damos um certo desconto para essa declaração do assessor do Obama. Afinal, com Romney a coisa seria ainda muito pior!

* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.