Terezinha Vicente: É feminista o socialismo bolivariano

Valores feministas, banidos tradicionalmente da razão e da política, são recuperados no socialismo de Chávez. As mulheres aprendem na organização das comunas, junto com os homens, a construir o poder popular.

Por Terezinha Vicente, de Caracas-Venezuela, no ComunicaSul

“São as mulheres que governam o mundo”, falou Chávez num dos últimos comícios desta campanha. Segundo as feministas que conheci aqui, que se reúnem coletivamente na Araña Feminista, reiteradas vezes o presidente venezuelano declarou-se feminista, mas o melhor de tudo é comprovar isso na prática.

O fato é que seu governo entendeu que sem igualdade e equidade para todos e todas, seria impossível aprofundar a democracia e construir o socialismo. E as mulheres assumiram o protagonismo da construção da nova Venezuela Bolivariana. “A participação das mulheres se destaca em todos os âmbitos, político e social, sobretudo na construção do poder popular”, diz Alba Carosio, vice-reitora da Universidad Central de Venezuela. “São elas que organizam a vida em relação à água, educação, saúde, mobilidade urbana então abraçaram a construção dos conselhos comunais”.

Embora o modo feminista de ver o mundo sempre tenha existido, mesmo que banido pela História oficial, sua expressão pública vai surgir apenas no século XIX. Suas bases teóricas vão contrapor-se ao patriarcado machista, uma das expressões mais opressoras do capitalismo, percebido por muito tempo e por algumas culturas apenas pelas mulheres.

O machismo é um dos traços culturais mais difíceis de superar, pois seus valores combinam perfeitamente com o capitalismo e com os atuais conceitos neoliberais difundidos por seu aparelho de propaganda, os oligopólios da comunicação. “As condições das mulheres aqui ainda não mudaram tudo o que pode mudar”, diz Alejandra Laprea, cineasta e documentarista atuante. “O importante é que se abrem espaços para discussão dessas condições; problemas em discussão, decide-se coletivamente. E o governo tem obrigação de resolver”.

O protagonismo das mulheres na revolução bolivariana tem impulsionado políticas e organismos, como o Banco Mulher, o Ministério do Poder Popular para Assuntos da Mulher e da Igualdade de Gênero, as Defensorias Especiais para os Direitos Humanos das Mulheres, os Tribunais Especiais, etc. Por isso a maioria das feministas venezuelanas apoiam a continuidade do governo Chávez.

Elas reconhecem nas Missões, políticas importantes para atacar a desigualdade histórica das mulheres mais pobs: Missão Mães do Bairro, Filhos e Filhas da Venezuela, Missão Amor Maior (Idosos), além de estarmos presentes em todas as demais Missões. Elas citam também leis importantes conquistadas para as mulheres: Lei pelo Direito das Mulheres a uma vida Livre de Violência, Lei de Proteção à Maternidade, à Paternidade e à Família, e os varios avanços trazidos pela nova Lei Orgânica do Trabalho, das Trabalhadoras e Trabalhadores.

Subjetividade transformada pelo amor

A organização popular é o traço principal da revolução bolivariana, que pratica a democracia com ampla participação de todos e todas. Nos bairros, são as mulheres o principal sustentáculo da organização local, que começa com os Conselhos Comunais (cerca de 400 famílias), que se reúnem com outros em Comunas, e todos são o Poder Popular que se articula com o Governo, em todos os níveis para o avanço dos programas sociais, aqui denominados Missões. “A prática tem mostrado às mulheres que elas são capazes de transformar”, explica Sandra Angeleri, também da Universidade Central de Venezuela, “e isso transforma sua subjetividade”.

Com os valores consumistas propagandeados que conhecemos bem no Brasil, as feministas dizem que antes da revolução a sociedade estava sendo empurrada ao individualismo, à defesa da família nuclear, à competição. Agora, elas concordam comigo, pode-se dizer que a metodologia da revolução é o amor. “E não apenas com os que são iguais a você”, continua Sandra. “É a metodologia de se colocar no lugar do outro, e é uma solidariedade não apenas de classe, é transversal com a diversidade social, com as mulheres, os indígenas, os negros”.

Cada carro do MetroCable divulga um conceito do socialismo
Chávez é um pedagogo, diz Sandra, e basta ver um discurso seu para perceber, ele está sempre ensinando algo. “De origem popular”, explica Alba, “Chávez estudou muito nos anos 90, quando esteve preso por sua tentativa de insurreição, contatou muitas pessoas, não foi um tempo perdido para ele. É uma figura maternal, nada patriarcal, está sempre falando dos cuidados com as pessoas, com as crianças, com os velhos”.

Nas entrevistas no Palácio, sempre com um monte de livros ao lado, não é raro abrir algum deles e fazer uma citação para ilustrar o assunto. E esta cidade o tempo todo educa para os valores da solidariedade, do coletivo, da alegria, do direito à felicidade. Mensagens no Metrô, em painéis nas ruas, além das rádios e televisões públicas e comunitárias, claro, cuja programação é aquela com que sonhamos os que querem um outro mundo possível. Há diversas bancas nas ruas vendendo publicações, bastante acessíveis no preço, com a legislação , os direitos e como fazê-los reais, a começar da Constituição em edições pequeninas; o presidente Chávez volta e meia aparece com uma dessas na mão. Realmente, ele é o principal educador deste país.

“Obrigado a todos os amigos e amigas do mundo por suas palavras e seus sentimentos de amor para Venezuela!!!”, publicou o presidente na segunda-feira pós eleições em sua conta oficial de twitter, @chavezcandanga, como foi amplamente divulgado.

A mensagem combina com a sua campanha deste ano, cujo principal símbolo foi o coração, num país onde declarações de amor viraram palavra de ordem política! De origem militar, mas humilde, Hugo Chávez é uma figura doce, fala com ternura e não tem vergonha de chorar, de cantar, de mostrar sentimentos e utilizar palavras e conceitos tradicionalmente tidos como femininos, e excluídos da razão e da política. “Este processo emancipador”, analisa Alejandra, “chega aos homens heterossexuais que se sentem hoje completamente livres para dizer ‘eu te amo’ ao seu líder, a outro varão heterossexual e o amor não é aquele que se diz no ouvido de alguém, se pode gritar numa manifestação, virou palavra de ordem!”

Comunicação comunitária e novos valores ideológicos

No plano econômico, os empréstimos para as mulheres dão preferência aos investimentos coletivos, que devem também ser solidários. Se comida e costura constituíram os primeiros empreendimentos, hoje já há atividades agrícolas, artesanato, pequenas fábricas de artigos de limpeza, de uniformes, por exemplo. “Elas aprendem todo o processo”, explica Alba, “não só produzir, mas como comercializar, circular a mercadoria; melhora a vida material das mulheres e também educa para a organização. Embora o ganho financeiro seja difícil, o crescimento pessoal é muito grande”. Isto explica o crescente engajamento do povo na construção do projeto chavista, que explica o crescimento do índice de participação popular numa eleição sem voto obrigatório, o que garantiu a diferença da vitória para Chávez.

“A oposição diz que a educação é ideológica e nós dizemos que todas o são”, afirma Alba. O fato é que, comunicados do governo, discursos do presidente, mensagens nos serviços da cidade e, sobretudo, a programação das televisões públicas e comunitárias, estão permanentemente educando para novos valores, do socialismo do século XXI. Eu vi muitos programas na televisão pública sonhados por nós feministas. Temas como segurança e soberania alimentar são frequentes, desde a importância de comer frutas e não embutidos, a denúncias da manipulação dos alimentos no mundo, do envenenamento pelos agrotóxicos, assuntos prioritários para o movimento de mulheres no mundo. Fora o debate do socialismo em oposição ao capitalismo, permanente, com visões a escolher, é só mudar de canal. Se há uma coisa inegável aqui é a existência de liberdade de expressão; só que agora não existe apenas o discurso do mercado nos meios de comunicação privados.

Uma intensa programação, cultural e jornalística, é levada ao povo pelas emissoras públicas e cumprem papel especial os meios comunitários, rádios e televisões, que crescem e se fortalecem por toda a Venezuela. “Nos momentos de crise, quando o povo quer saber a verdade, todos buscam as comunitárias”, afirma Alejandra, que atua como documentarista, para a televisão, inclusive. “Os meios comunitários aprenderam sua importância no enfrentamento do golpe de 2002”, continua. “E o governo se deu conta da importância da democratização dos meios, pois viu que apenas os comunitários o defenderam!” A música é outro direito na educação aqui, para todas as crianças, existe um sistema de orquestras famoso no mundo. Painéis e grafites estão por todos os muros da cidade, assinados por “Coletivos muralistas”, muitos com mensagens educadoras para o socialismo.

“No coletivo, aprendemos que a cultura está aqui, a nossa força está aqui…”, diz uma das peças de propaganda na televisão. A solidariedade com os que tem menos, com aqueles atingidos por acidentes climáticos, por exemplo, é mostrada o tempo todo como valor fundamental, em contraposição ao individualismo consumista que reclama dos serviços nos canais da oposição, que pede mais segurança e menos “salvação da humanidade”. Não sabemos até onde irá esse processo, pois quase metade do povo venezuelano expressa os valores colocados pela propaganda da direita e, tal como aqui, o preconceito e a discriminação com a inclusão dos pobres em meio à classe média aparece bastante.

Em contraposição, a valorização da participação de cada cidadã e cidadão, o poder como um direito individual intransferível, eleva a autoestima do povo o tempo todo. E uma coisa é fato: homens e mulheres venezuelanos vivem numa absoluta democracia, radicalmente participativa, cuja experiência singular faz o povo protagonista da História!