Vovô do Ilê:“Bonito é subir o Curuzu, difícil é chegar na cidade”

Na entrada da Senzala do Barro Preto, no Curuzu-Liberdade, sede do bloco carnavalesco Ilê Aiyê, uma movimentação no início da manhã desta quarta-feira (1/11) indicava que mais tarde haveria festa. E era festa de aniversário. Há exatos 39 anos nascia essa entidade carnavalesca que é a cara da Bahia e símbolo da luta pela igualdade entre os povos. É lá que o seu atual presidente, conhecido como Vovô do Ilê, recebe a nossa equipe para uma entrevista.

 – O Ilê chega ao 39º aniversário. Qual a avaliação que faz desse tempo de atuação?

O saldo é positivo. Nesses 39 anos nós avançamos bastante. Nós conseguimos resgatar, ainda que não totalmente, esse orgulho de ser negro, fazer como que o negro assumisse a sua negritude, o que é importante. No carnaval, conseguimos fazer com que as pessoas conhecessem mais a África. A nossa grande realização foi construir a nossa sede, que já tem 10 anos. Diminuímos, mas não acabamos com as desigualdades, ainda existe reparação para ser feita. Muito por culpa nossa porque não adianta por a culpa na minoria branca, que comanda Salvador, no apartheid que existe aqui. A faceta do racismo mudou, não é mais chamar você de feio, de fedorento, que seu cabelo é ruim. Existem outras formas mais sutis de impedir o seu empoderamento, como a educação falha. Nós estamos pulando essas barreiras, mas é preciso que o jovem negro seja presente. Essa turma beneficiada pelas cotas precisa participar porque o cara começa a achar que terminou a faculdade, pegou o diploma, começa a ganhar R$ 3 ou 4 mil e pensa que está rico, que virou branco, se muda da periferia e vai morar no bairro da classe A. Ele pensa que deixou de ser negro e eu canso de repetir: se você esquecer que é negro, alguém vai te lembrar lá na frente, a polícia, o porteiro, o ascensorista, e a forma que eles lembram é dura. Se você não está preparado, choca. Então, nesses 39 anos de Ilê Aiyê, as pessoas precisam refletir sobre essa escravidão mental que ainda existe. Então, eu to muito feliz, mas muita coisa ainda precisa ser feita por essa turma jovem que está aí.

– O Ilê tem um foco na valorização da cultura negra e na promoção da autoestima do povo negro, enfrentando uma luta com toda essa comunicação que está aí e ainda é pensada em uma lógica branca. Como é que vocês medem se os trabalhos estão dando resultado?

Pela postura das pessoas. Com todo esse avanço da música baiana, do axé, do pagode, o Ilê Aiyê continua grande com as gerações, que continuam interessadas na musicalidade. Nós conseguimos modificar, perpetuar. Antes dos anos 70, nós tínhamos um problema com estética, com roupas coloridas, com cabelo, e até mesmo com a questão do relacionamento de casais negros. São aspectos que servem de medição de que as coisas estão mudando e que o trabalho está dando resultado.

– Já que falou em carnaval. Qual a avaliação que faz do carnaval baiano e da presença dos blocos afros na festa hoje?

O carnaval baiano não mudou muito dos anos 70 pra cá, mas aquela época de carnaval romântico acabou. Hoje, chama-se carnanegócios e você tem que ser profissional no carnaval para cumprir as exigências da Prefeitura, de sonorização, higiene. Apesar da discriminação, nós também temos que nos profissionalizar e ter um negócio. O patrocinador quer o retorno e, antes de eles serem capitalistas, são racistas, podem até perder dinheiro, mas não querem a marca dele junto da negrada, que é quem consome. Aqui, nós não temos conflitos, nem coragem de fazer boicote. Tem que participar do Conselho do Carnaval, ir lá brigar porque senão não vai conseguir mudar. Nós temos o espaço novo, o Afródromo, não é nenhum apartheid, não vai mexer no carnaval tradicional, é só mais uma opção.

– Então o Ilê é a favor do Afródromo?

Nós somos um dos mentores do projeto. Foi formada uma liga, com o Ilê, Timbalada, um, bloco novo chamado Universidade Baixa, de Carlinhos Brown, Malê, Cortejo Afro, Muzenza. São sete blocos que vão reger junto com a produtora que vai organizar. Nós estamos com muita tranquilidade e muita expectativa.

– Não acha que podem perder com o circuito próprio?

Não porque o Ilê tem seu público cativo, que espera o Ilê de madrugada, e não vai mexer no carnaval. É uma coisa alternativa. A gente vai desfilar três dias lá em cima [cidade alta] e o domingo, que vai folgar, vai desfilar lá em baixo [cidade baixa]. Nós estamos preocupados em atingir, também, o público que chega de navio, os turistas que chegam. Vamos ter uma arquibancada pra 20 mil pessoas por dia e nesse primeiro ano vão ser distribuídos convites. Lá vai ser um desfile individual e você vai poder mostrar toda a sua beleza, seu charme, as suas alegorias. Acho que vai dar certo.

– Vale pro Carnaval 2013?

Estamos trabalhando pra esse carnaval.

– Além do trabalho com música, o Ilê ainda promove ações sociais, com foco na educação. A entidade mantém escolas voltadas para as temáticas negras. A necessidade de cumprir esse papel é porque as escolas do Estado estão despreparadas?

Aqui, nós praticamos as chamadas políticas compensatórias. Onde o governo não tem condições de atender, nós entramos, não com o objetivo de substituir. É muito complicado porque filantropia é algo muito bonito, mas é muito caro. Tem o professor, a merendeira e aqui você não tem essa cultura do voluntariado, como nos Estados Unidos. Mas eu me sinto feliz do Ilê ter ajudado muita gente, ter tirado muitas crianças das ruas, das drogas, da violência. Tem gente formada pelo Ilê Aiyê na Europa, nos Estados Unidos, nas Américas, no Sul do país. Eu estou muito feliz com esse papel social do Ilê, que muita gente vê apenas como um bloco de carnaval, mas aqui a gente tem escola, tem biblioteca, vamos inaugurar um estúdio, uma cozinha pra curso profissionalizante. E a gente está sempre em busca de parceiros, de gente que tenha o olha para o social e que ajuda a diminuir das desigualdades dessa cidade.

– Ano que vem o Ilê chega ao 40º aniversário. Quais os próximos desafios?

Tem uma música que diz assim: “Bonito é subir o Curuzu, difícil é chegar na cidade”. Queremos uma cidade mais limpa, mais humana, menos perversa. Antes de ir embora dessa terra, ainda quero ver um negro no Poder, já passou da hora, aqui na Bahia e no Brasil. Talvez assim a gente consiga minimizar mais as coisas ruins que acontecem aqui. Para o próximo ano, estamos preparando uma grande festa, com lançamento de livro, exposições, o mês de novembro todo, lançamento de disco, DVD, e tudo isso pra comemorar os 40 anos do Ilê Aiyê.

De Salvador,
Erikson Walla