Bochenek: O Judiciário brasileiro é democrático-contemporâneo?

A expansão do Poder Judiciário e do protagonismo dos tribunais nos últimos anos está relacionada com o aumento dos níveis de democratização, ainda que graduados de formas diversas em diferentes países. Em decorrência da alteração de cenários estatal e societal, nacional e global, o Poder Judiciário tornou-se mais visível.

Por Antonio César Bochenek*

Por outro lado, afloram as suas deficiências. As consequências das transformações encontram maiores reflexos na administração dos tribunais e nas potencialidades e limites da democratização do Judiciário.

Como apontou Raul Eugênio Zaffaroni, não é tão simples democratizar (1995: 182). A indicação do tema do artigo advém dos estudos do jurista e professor argentino, atualmente ministro da Suprema Corte Argentina. Na década de 1990, logo após o período ditatorial na América Latina, a partir da análise dos modelos estruturais em torno dos quais foi constituído o Judiciário — a divisão proposta pauta-se na forma de ingresso na magistratura, independência judicial, relações como poder político e a cúpula do Judiciário —, Zaffaroni apontou três modelos: empírico-primitivo, tecno-burocrático e democrático-contemporâneo.

Para Zaffaroni, o modelo empírico-primitivo consiste no tipo estrutural básico em que não há real independência do Judiciário, mas atrelamento bastante profundo aos interesses da camada detentora do poder público, em regra, do Executivo. O controle de constitucionalidade, se existir, será precário e circunstancial. Em geral, o modelo empírico será o de países não democráticos ou com democracias pouco estáveis ou escassamente desenvolvidos (Zaffaroni, 1995: 103).

A superação desse modelo ocorre a partir da necessidade de qualificar tecnicamente e constantemente os juízes (modelo tecno-burocrático). As principais características do modelo tecno-burocrático consistem na rigorosa seleção de ingresso nos quadros da judicatura, em regra, por meio de concurso público; a estruturação da magistratura, na forma de carreira verticalizada, gerido por suas cúpulas e sem outras funções que as de resolver os conflitos e auto-governar-se em certa medida. Zaffaroni (1995: 101-103) sustenta que o concurso público garante a democracia no processo de seleção à judicatura, mas que, por si só, não permite configurar estruturas democráticas.

A democratização do Judiciário, perseguida para atender às sociedades contemporâneas, com base na participação popular e no fortalecimento da cidadania, integra a concepção do modelo democrático-contemporâneo, ou seja, os modelos são horizontalizados, pluralistas e com distribuição orgânica funcional (Zaffaroni, 1995: 102), a partir de alguns cuidados básicos, aqui sintetizados, a serem respeitados pelos sistemas judiciais democráticos: a) redução da hierarquia interna do Judiciário, entre juízes não há hierarquia, mas competências distintas; b) transferência das funções de controle interno e disciplinares a um órgão democrático, como o conselho; c) designação dos conselheiros por meio do voto universal de todos os juízes; d) composição pluralística; e e) sessões públicas. O modelo democrático preocupa-se com a formação da magistratura efetivamente independente com atuação calcada nos interesses coletivos e da coletividade.

Acrescento outros três cuidados a serem observados nos sistemas judiciais democráticos: a) a transparência de todos os atos do Judiciário (Chauí, 2006); b) a responsabilização dos juízes e integrantes dos sistemas judiciais (O’Donnell, 1999); e c) a partilha de poderes e maior participação de todos os envolvidos na tomada de decisões, ou seja, primazia pelas decisões deliberadas e construídas por meio da participação popular e por todos os agentes do sistema judicial, respectivamente destinatários final e executores dos serviços prestados pelo Judiciário, expurgando de vez a sistemática de decisões das cúpulas para serem cumpridas pelas bases, de cima para baixo, muitas vezes, em discordância com a vontade popular.

A partir das bases teóricas lançadas pelo autor argentino e das relevantes transformações operadas nos últimos 20 anos, é de suma importância refazer a análise a partir das condições sociais e institucionais após o amadurecimento democrático. Numa perspectiva ampla e geral, é possível dizer que o Poder Judiciário brasileiro avançou para se afirmar como um modelo democrático-contemporâneo. Contudo, não se trata de um modelo acabado, mas sim em permanente construção.

Os sinais de evolução são constados pelas reformas legislativas que criaram ou aprimoraram órgãos e estruturas administrativa, fiscalizatória e correcional (CNJ, CNMP), bem como a partir da criação e reforço de estruturas voltadas ao aprimoramento e aperfeiçoamento dos magistrados (ENFAM, CEJ), além das reformas processuais e institucionais que visam agilizar a tramitação processual (juizados especiais, diminuição de recursos, processo eletrônico). Todas as transformações provocam rumores de conservadores e euforia daqueles que estão na vanguarda das alterações. Contudo, o equilíbrio sempre é a melhor medida e as transições e rupturas são cada vez mais necessárias nas sociedades contemporâneas.

Além das reformas legislativas, ocorreram transformações no Poder Judiciário (TV Justiça, Prêmio INOVARE, juizados itinerantes, conciliação). Sem adentrar em acertos ou equívocos de cada iniciativa, destaco que as medidas inovadoras e criativas, na maioria dos casos, de juízes e servidores, mas também de advogados e membros do Ministério Público, propiciam novas formas para solucionar novos e velhos problemas e proporcionar melhores resoluções dos conflitos submetidos ao Judiciário ou ainda — e em especial — prevenir os litígios e apaziguar o meio social. Aliás, no próximo artigo pretendo lançar pistas sobre os princípios da inovação, criatividade e coerência voltados para o Poder Judiciário, mas que também podem ser aplicados para qualquer administração pública.

Apesar das evoluções legislativas e judiciais, ainda é preciso avançar mais e dar atenção às pessoas e aos cidadãos, que são os principais destinatários das atividades judiciais. Ou seja, o Judiciário é constituído de e por pessoas que os fundamentam e legitimam. É preciso reverter a desconfiança em relação ao Judiciário constantemente indicada nas pesquisas de opinião. Para tanto, é preciso ouvi-las e prestar a atenção no que dizem para desvendar as prioridades, ressaltar os anseios de Justiça, combater os privilégios, omissões e atitudes corruptas. Sobretudo para tornar o Judiciário mais democrático, participativo, aberto, e assim transformar e manter um órgão que represente a vontade social, sem olvidar as constantes e necessárias transformações sociais.

As sementes foram lançadas. Contudo, o Judiciário brasileiro precisa de uma revolução democrática da Justiça e do Direito (Santos, 2007), principalmente a partir das concepções e mentalidades dos seus integrantes, respeitadas as vozes e anseios de todas as pessoas que integram a sociedade, para enfim caminhar para um modelo verdadeiramente e integralmente democrático-contemporâneo.


Referências

CHAUÍ, Marilena (2006). Democratização e transparência. In Editora Fundação Perseu Abramo. Leituras da crise: Diálogos sobre o PT, a democracia brasileira e o socialismo. São Paulo: Autor.

O’DONNELL, Guillermo (1999). Horizontal Accountability in New Democracies. In SCHEDLER, Andreas; DIAMOND, Larry Jay; PLATTNER, Marc. F.. The Self-Restraining State: power and accountability in new democracies (pp. 29-51). Boulder: Lynn Rienner.

SANTOS, Boaventura de Sousa (2007). Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Editora Cortez.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl (1995). Poder Judiciário: Crise, Acertos e Desacertos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais

* Antonio César Bochenek é juiz federal de Ponta Grossa (PR), presidente da Associação Paranaense de Juízes Federais e diretor do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus). Mestre e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.

Fonte: Consultor Jurídico