Estupro, uma epidemia contemporânea

A barbárie que vitimou a jovem indiana de 23 anos de idade em dezembro, em Nova Delhi, é uma realidade cruel que ronda as mulheres em todo o mundo, inclusive no Brasil, onde os dados são alarmantes.

Por José Carlos Ruy

Protesto contra a violência contra a mulher na Índia

Segundo a ONU, cerca de 70% das mulheres poderão sofrer algum tipo de violência no decorrer de sua vidaç Para aquelas que têm entre 15 a 44 anos o risco de sofrer estupro e violência doméstica é maior do que o de adquirir câncer ou malária, ou sofrer acidentes de carro, diz o Banco Mundial.

Em geral, são vítimas de seus companheiros, que batem nelas ou forçam-nas a manter relações sexuais indesejadas. Pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS) feita em 11 países revela que a porcentagem de mulheres vítimas de violência sexual por parte de seus companheiros varia entre 6% no Japão a 59% na Etiópia. Outras pesquisas mostram que metade de todas as mulheres assassinadas são vítimas de seus maridos ou parceiros, ou ex-maridos ou ex-parceiros. Na Austrália, Canadá, Israel, África do Sul e Estados Unidos, entre 40% a 70% das mulheres assassinadas foram vítimas de parceiros, diz a OMS.

No capítulo violência sexual, posto em evidência pelo martírio da jovem em Nova Delhi, em dezembro, os números são estarrecedores. A ONU calcula que, no mundo, uma em cada cinco mulheres será vítima de estupro ou tentativa de estupro ao longo de sua vida, um mal que atinge indiscriminadamente bebês ou avós. Na República Democrática do Congo é uma verdadeira epidemia, com o registro de cerca de 1.100 estupros por mês – uma média diária de 36 mulheres e meninas estupradas.

No Brasil

Esta epidemia perversa faz parte da realidade das mulheres brasileiras. O Mapa da Violência 2012 – homicídio de mulheres no Brasil, coordenado por Julio Jacobo Waiselfisz e publicado em agosto de 2012 pelo Cebela – Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americanos, da Flacso Brasil mostra que em 2011 foram atendidas mais de 13 mil mulheres vítimas de violências sexuais. (aqui)

Há um tabu, semelhante ao que acoberta a violência doméstica, que impede o acesso ao conhecimento do tamanho do problema; na Índia, como aqui, as mulheres vítimas de violência (sobretudo de estupros) evitam denunciar as agressões e seus agressores, temendo constrangimentos e novas violências.

O Mapa da Violência 2012 descreve um quadro dantesco. Dos 13.096 casos de violência sexual registrados no Brasil em 2011, 7.626 (58% do total) ocorreram naquele local onde se supõe que a mulher teria mais segurança: nas próprias residências; 2.117 ocorreram em vias públicas e os demais em lugares como habitações coletivas, escolas, locais de esportes, bares ou similares, comércio, indústria, construção, outros, ou lugares ignorados.

A crueldade dessa situação fica mais nítida na descrição da relação do agressor com suas vítimas (para esta análise os autores do Mapa só levaram em conta os dados onde a identificação foi possível, somando 10.939 do total de 13.096 casos registrados).

A imensa maioria dos agressores são pessoas da convivência cotidiana das mulheres agredidas: amigo ou conhecido, 2.951 (27%); padrasto, 1.146 (10.5%); pais, 1.070 (9,8% do total); namorado, 761 (7%); cônjuge, 566 (5,2%); irmão, 251 (2,3%); ex-namorado, 148 (1,4%). Eles formam 63% dos casos onde foi possível a identificação do agressor, quase o dobro dos casos onde os violadores foram dados como desconhecidos (3.588 casos, ou 33% do total).

O Mapa da Violência mostra dados que relacionam a faixa etária das mulheres agredidas, com os locais onde ocorreram as agressões e o tipo de relação dos agressores com suas vítimas. Eles mostram um quadro de horror. Há agressões relatadas que incluem desde bebês, com menos de um ano de idade, até mulheres com mais de 60 anos de idade.

Nas violações ocorridas dentro das residências, a faixa de idade até quatro anos registra 1.048 violações (99 eram bebês com menos de um ano de idade!); entre cinco a nove anos de idade, 1.545 casos; entre 10 a 14 anos de idade, foram 2.723; de 15 a 19 anos, 691; de 20 a 29 anos, 581; acima de 30 anos, 1.038 casos.

Isto é, dentro de casa as vítimas foram sobretudo crianças e adolescentes com menor capacidade de defender-se dos agressores: são 5.316 (70%) entre os 7.626 agressões ocorridas nas residências, revelando a extensão da covardia dos agressores.

Nas ruas, onde foram relatadas 2.117 agressões, 41 vitimaram crianças com menos de quatro anos de idade (16 bebês com menos de um ano!); 78 vitimaram crianças entre cinco e nove anos; 388 atingiram meninas entre 10 e 14 anos; na faixa entre 15 e 19 anos foram 573 vítimas; entre 20 a 29 anos, foram 598; acima de 30 anos foram 439 casos. Isto é, nas ruas as vítimas menores de 14 anos somaram 507 casos; aquelas com idades entre 15 e 30 anos somaram 1.171, e aquelas com mais de 30 anos somaram 439 casos.

Pais, padrastos e “amigos”

Quando se leva em conta o tipo de relacionamento dos agressores com suas vítimas, sobressai o número dos “amigos ou conhecidos”, e dos pais e padrastos.

Na faixa etária com menos de quatro anos, ocorreram 780 violações (75 de bebês com menos de um ano); os violadores foram pais (298, ou 38%), padrastos (135, ou 17%) e “amigos” (300, ou 38,5%).

Na faixa seguinte, de cinco a nove anos, foram 1.210 casos; os responsáveis foram pais (276, ou 23% do total), padrastos (321, ou 26,5%), “amigos” (542, ou 45%). Entre 10 e 14 anos foram 2.171 casos: pais, 344 (15,8%): padrastos, 509 (23,4%); “amigos”, 1.233 (56,7%). Entre 15 e 19 anos, foram 725 casos: pais, 120 (16,6%); padrastos, 148 (20,4%); “amigos”, 433 (59,7%). Entre 20 e 29 anos, foram 287 casos: pais, 23 (8%); padrastos, 26 (9%); “amigos”, 226 (79%).

Urgência

Estes dados são um alerta vigoroso sobre a urgência que envolve o combate à violência contra a mulher. A luz vermelha fica ainda mais intensa ao se constatar que o ambiente da violência é principalmente a residência, e não a rua, e que os violadores são sobretudo pais, padrastos e “amigos”, e não desconhecidos.

A violência criminosa esconde a renitente convicção, ainda muito arraigada, de que as mulheres devem ser submissas às vontades e desejos dos homens com os quais convivem. É o retrato iniquo da exploração e da opressão da mulher num mundo em que, seja no Brasil, na Índia ou em nações que se supõem de civilização mais adiantada, a desigualdade entre os direitos de homens e mulheres viceja como uma epidemia.

O estupro e assassinato da estudante indiana, em dezembro, foi o estopim para um levante nacional contra a violência e pelo respeito às mulheres que tem paralelo à luta dos negros contra o racismo e pelos direitos civis nos EUA, há mais de meio século.

Os dados do Mapa da Violência tem a virtude de demonstrar, com números, aquilo que as mulheres brasileiras conhecem em seu cotidiano: a mesma realidade cruel e degradante gerada pela desigualdade e pelo machismo. Na Índia (que tem uma população de 1,2 bilhões de pessoas) foram registrados 24 mil casos de estupro em 2011 (em 2010 foram 22 mil). Em 94% dos casos os agressores eram pessoas conhecidas (vizinhos ou parentes), diz a BBC.

No Brasil, com uma população seis vezes menor (194 milhões), os registros indicam 13.096 crimes dessa natureza em 2011. Isto é, lá a relação é de um caso para 50 mil habitantes; no Brasil, a relação é ainda pior: um caso para cada 15 mil habitantes. Ou seja, mais de três vezes mais, relativamente! Uma calamidade acobertada pelo silêncio!