Resistência, mobilização e luta: expressões do caminho martiano

Em palestra na 3ª Conferência Internacional sobre o Equilíbrio do Mundo realizada no Palácio de Convenções de Havana, em Cuba, o secretário nacional de Comunicação do PCdoB, José Reinaldo de Carvalho, falou dirigiu-se a um variado público formado por cubanos, brasileiros, demais países latino-americanos, europeus e asiáticos. Leia a íntegra do seu discurso abaixo:

Com a certeza de que seguem vigentes as ideias do apóstolo da independência cubana, prócer das lutas pela unidade e integração dos povos de Nossa América, participamos desta Conferência, transmitindo nossos agradecimentos ao Comitê Organizador pelo brilhante conteúdo e gentil acolhida.

Em um mundo dilacerado por contradições, instabilidade, crises e guerras, as ideias de José Martí podem contribuir para que a humanidade reencontre caminhos e rumos por onde trilhar para buscar o progresso social, a liberdade, a autodeterminação dos povos e nações, a paz, a justiça e a felicidade. 


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É preciso trilhar os caminhos martianos na busca pelo equilíbrio do mundo, como propõe o temário da Conferência.

O pensamento e a obra do Herói Nacional de Cuba são os de um homem de raro talento e refinada sensibilidade, o publicista e o combatente que interpretou os problemas da época em que viveu e vislumbrou o futuro, do líder que foi capaz de fundar o Partido Revolucionário Cubano, que organizou e conclamou à guerra contra o colonialismo espanhol, o pensamento e a obra de um gigante, o que levou o comandante da Revolução Cubana, meio século depois do desaparecimento físico de Martí, a considerá-lo o inspirador e autor intelectual desta façanha vitoriosa em 1º de janeiro de 1959.

O pensamento e a obra de José Martí seguem vigentes e contêm um legado político-ideológico humanista e latino-americano, com profundo sentido social porque orientado para “los pobres de la Tierra”, como ele dizia, e patriótico, porque voltado para a conquista da independência de seu país.

A época atual se caracteriza pela manifestação de dilacerantes crises, explosivas contradições, instabilidade e acidentadas transições nos aspectos econômico e geopolítico, o que está na raiz de conflitos nacionais, lutas populares e de classes.

Dizia Martí que “de Nuestra América se sabe menos de lo que urge saber”. Assim que, para nós, trilhar os caminhos martianos em busca do equilíbrio do mundo significa compreender e interpretar as tendências do que está ocorrendo neste início de século na América Latina e no Caribe. Em nossa região as contradições econômicas e políticas geraram um cenário de luta com peculiaridades históricas, cujo resultado foram vitórias políticas e eleitorais de forças progressistas, democráticas e populares, o que criou uma tendência para a obtenção de conquistas nos planos democrático, dos direitos sociais e da afirmação das aspirações patrióticas dos povos, como também da integração com soberania.

Hoje, estão em construção mecanismos de integração regional que permitem assumir posições vantajosas em um cenário mundial de crise econômica e acentuados conflitos, abrindo a possiblidade de edificar novas alternativas para o desenvolvimento e de constituir um polo geopolítico que produz novas correlações de forças.

A maior expressão desse fenômeno é a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), cuja reunião de cúpula, com a presença de chefes de Estado e de governo, realiza-se nestes dias em Santiago do Chile. Nesta mesma ocasião Cuba assumirá a presidência do bloco.

A fundação da Celac, em dezembro de 2011, em Caracas, Venezuela, foi um acontecimento de tamanha dimensão que o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, disse tratar-se do acontecimento institucional mais importante da região no espaço de um século. E o presidente Raúl Castro, ao intervir na reunião de fundação, destacou o caráter transcendental do fórum, reivindicando “mais de dois séculos de lutas e esperanças”. Ainda de acordo com o mandatário, a região "persevera em seus objetivos de independência, soberania, desenvolvimento e integração; sabendo que sem justiça social e uma distribuição mais equitativa da riqueza isso não seria possível".

A Celac afiança-se como instrumento de diálogo e defesa da identidade, aspirações e culturas regionais, sob os princípios básicos da inclusão dos 33 países independentes da América Latina e Caribe e sem a pretensão de substituir os mecanismos existentes. Dessa maneira, emerge como um dos fatores propulsores de novos equilíbrios de forças no mundo, um ator diferenciado na cena interacional, contraposto aos hegemonismos imperiais, credenciado, portanto, para contribuir para o advento de nova ordem política e econômica mundial.

A importância histórica dos atuais processos de integração na América Latina se agiganta quando se tem presente que há bem pouco tempo a organização com aparência de multilateralismo que existia na região era a famigerada Organização dos Estados Americanos (OEA), instrumento dócil e serviços aos interesses da grande potência do Norte. Observe-se também que a Celac não se contrapõe, antes contempla e incorpora, outras experiências precedentes de integração na região, como a Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba) e a União das Nações do Sul (Unasul).

É uma verdadeira revolução institucional de fato, considerando-se que a nova organização reúne pela primeira vez na história em um mesmo fórum os 33 países independentes da América Latina e do Caribe, sem os Estados Unidos e o Canadá. A Celac, com a variedade de experiências políticas e de modelos socioeconômicos e um patrimônio histórico-cultural com matriz comum, é a experiência institucional que mais se aproxima do sonho de integração e independência de Martí e Bolívar. O seu advento assinala o dobre de finados do pan-americanismo inseminado pela Doutrina Monroe e desenvolvido com a orientação política que no começo do século 20 foi batizada de “Corolário Roosevelt”. Por conseguinte, a nova entidade integradora é o marco miliário de um novo pan-americanismo, o da Nossa América, aquele que corresponde à vontade de povos soberanos e abre caminho para a conquista da segunda independência.

Isto assume ainda maior significado, se se tem presente que para além da postura patriótica e a decisão de afirmar a soberania nacional, o bloco se orienta – malgrado inevitáveis diferenciações – pela luta por objetivos de inclusão social, crescimento com igualdade e desenvolvimento sustentável.

Os fenômenos de caráter econômico e político em curso na conjuntura política latino-americana fazem parte das transições do mundo contemporâneo, e guardam relação direta com a busca por novos equilíbrios, pela conquista de novo ordenamento político e econômico, pela justiça, o progresso e a paz.

Um dos elementos mais salientes dessas transições é o aprofundamento da crise estrutural e sistêmica do capitalismo-imperialismo. Este fenômeno está no centro dos principais problemas e conflitos internacionais da atualidade.

A natureza exploradora do capitalismo, opressora sobre os trabalhadores, espoliadora sobre as nações, predadora sobre a natureza torna-se mais patente com as devastadoras consequências da crise de superprodução e de superacumulação de capitais, que por sua vez fazem parte do processo de concentração e centralização de capitais. É uma crise que se estende a todo o globo, sendo não só econômico-financeira, mas também energética, alimentar, de matérias-primas e ecológica. Mais até do que outras, esta crise evidencia e acentua o caráter parasitário e decadente do capitalismo, confirmando a sua tendência para a estagnação.

A crise do capitalismo conduz também a desastres sociais e ambientais terríveis, a uma imensa regressão civilizacional durante a qual conquistas que custaram ingentes sacrifícios aos povos são postas em questão e eliminadas.

Há precisos 10 anos, no Encontro Internacional de Economistas sobre a Globalização e Problemas de Desenvolvimento, aqui realizado no ano de 2003, o Comandante da Revolução Cubana, Fidel Castro, afirmava que a globalização neoliberal “constitui a mais desavergonhada recolonização do Terceiro Mundo” e que “a ordem econômica prevalecente não é sustentável nem suportável”. Naquele mesmo momento, era comum a posição dos ideólogos do capitalismo e do imperialismo que desdenhavam com arrogância tais afirmações qualificando-as de catastrofistas.

Mais grave ainda é que as classes dominantes reacionárias e suas instituições econômicas e financeiras transnacionais buscam “soluções” nas velhas medidas que já resultaram em retumbante fracasso: diminuição do Estado, contenção salarial, desregulamentação financeira, precarização dos serviços públicos, desmantelamento das conquistas dos trabalhadores, circulação livre de capitais, privatização do patrimônio público, socialização das perdas das corporações.

É neste quadro de crise que se desencadeia uma brutal ofensiva dos potentados internacionais e das classes dominantes retrógradas contra as liberdades e os direitos fundamentais, a soberania e a autodeterminação dos povos e nações.

Sob esta ofensiva, nem mesmo o direito internacional e as próprias instituições criadas para assegurar o exercício de relações internacionais equilibradas e baseadas no multilateralismo e em normas consensuais, subsistem como tais, pois que acabaram sendo instrumentalizadas pelos interesses unilaterais de potências hegemônicas que exercem seu domínio por meio de políticas de força.

A Organização das Nações Unidas, para citar a mais importante, criada para promover a coexistência pacífica entre nações soberanas, assegurar o equilíbrio no mundo, garantir a aplicação das normas do Direito Internacional, dirimir os conflitos internacionais e promover a paz mundial, encontra-se sob pressão das potências imperialistas que cada vez mais impõem o seu ditame no mundo pela força.

Frequentemente, essas potências instrumentalizam a organização internacional, principalmente o seu Conselho de Segurança, para legitimar intervenções militares que se afiguram como verdadeiras agressões aos povos e nações soberanas. E quando o fazem, ignoram a própria Assembleia Geral e o Direito Internacional.

Tudo isto significa que entra na ordem do dia da luta dos povos por um novo ordenamento internacional a reforma não só do Conselho de Segurança, mas de todo o sistema das Nações Unidas.

Cinicamente, as potências imperialistas rasgam o documento básico do Direito Internacional, que é a Carta das Nações Unidas, em nome de conceitos arbitrários como a “intervenção humanitária” e o “direito de proteger”.

É no quadro de crise que aumenta a instabilidade política e se intensificam as ameaças às nações soberanas e aos povos.

Desde a primeira eleição do presidente dos Estados Unidos, em 2008 e agora, por ocasião da sua posse para o segundo mandato, os ideólogos neoliberais e conservadores fabricaram ilusões sobre a democratização das relações internacionais, o respeito ao direito internacional, a vigência dos direitos humanos e a paz.

Mas em essência a administração de Obama seguiu os caminhos do seu antecessor. É que do ponto de vista dos interesses estratégicos, ambos defendem a supremacia política e militar estadunidense no mundo. Tanto uma como outra facção política – os republicanos e os democratas – empenham-se alternadamente na defesa dos interesses imperialistas desta superpotência e o fazem por todos os meios, recorrendo ao militarismo e à guerra. Nada mais distante da realidade dos Estados Unidos e do mundo sob seu domínio imperial, do que o impulso democrático e revolucionário de dois séculos atrás, invocado retoricamente no discurso que o mandatário pronunciou diante do Capitólio na última segunda-feira, 21 de janeiro.

O mesmo se pode dizer do abismo que separa qualquer outra potência imperialista atual das noções de democracia e justiça, haja vista a França, aliada de Washington, que despeja bombas em países da África e participa com fervor das guerras da Otan.

Apesar da retórica "multilateralista" e pacifista, aumentam a agressividade e o militarismo das potências imperialistas, que se manifestam na militarização acentuada das relações internacionais, no monopólio das armas nucleares, na ameaça do uso destas armas e outras de destruição em massa, na instalação de bases militares, na hipertrofia de organizações agressivas, como a Otan, na existência das frotas navais do imperialismo estadunidense, uma das quais é a Quarta Frota, dedicada a ameaçador a segurança, a paz e a estabilidade na América Latina e Caribe.

A ofensiva imperialista se volta para todas as regiões do planeta e ameaça indiscriminadamente os povos e nações, mas na atualidade concentra-se na região do Oriente Médio. O sentido principal dessa ofensiva é executar, dar concretude e continuidade ao plano de reestruturação do Oriente Médio, para viabilizar o aumento da presença do imperialismo na região, visando a dominar as riquezas estratégicas ali existentes e a obter posições vantajosas na luta pela hegemonia no mundo.

A agressão à Líbia, o prosseguimento da ocupação do Afeganistão, os bombardeios sistemáticos com aviões não tripulados “Drones” na fronteira deste país com o Paquistão, a intervenção na Síria, com a alimentação em dinheiro, propaganda, armas e mercenários, assim como a campanha midiática, as pressões diplomáticas e políticas pela derrubada do presidente Assad; o prosseguimento da política de ocupação, colonização, limpeza étnica e terrorismo de Estado de Israel contra o povo palestino, com o apoio explícito do imperialismo estadunidense; as provocações sistemáticas contra o Irã – tudo isto são expressões das políticas intervencionistas do imperialismo, que afetam a soberania nacional, a segurança internacional e a paz.

Voltemos à Nossa América e aos caminhos de Martí e Fidel. O inimigo não assimila as próprias derrotas e não descansa em seus intentos de reverter as conquistas alcançadas por nossos povos, que estão relacionadas com o papel inspirador da Revolução Cubana e o advento da Revolução Bolivariana com seu socialismo do século 21. É intolerável que ainda hoje, depois de mais de 50 anos, se mantenha e até endureça o bloqueio imperialista a Cuba, numa tentativa de dobrar a sua revolução por meio do estrangulamento econômico.

Dizemos com Fidel: “Que la humanidad no tiene otra alternativa que cambiar de rumbo, es algo que no puede dudarse”.

Esta mudança não virá espontaneamente nem como resultado automático dos novos arranjos econômicos e políticos em gestação. Será fruto da resistência, da mobilização social e da luta em múltiplas vertentes e cenários, lutas que já estão em curso, protagonizadas por governos socialistas, revolucionários, progressistas, de esquerda, por partidos de vanguarda, movimentos sociais, em que se destaca o insubstituível papel das classes trabalhadoras, da juventude, das mulheres, da intelectualidade progressista, as rebeliões das massas populares, os movimentos de resistência às guerras imperialistas de agressão e ocupação de países, as lutas de libertação nacional.

Em todo esse caudal de resistências, lutas e movimentos vários estão presentes os caminhos martianos, como também a inspiração do heroísmo dos cinco patriotas cubanos – Gerardo Hernández, Ramón Labañino, Fernando González, Antonio Guerrero y René González – injustamente presos por lutar pela integridade de sua Pátria e a segurança de sua gente. Eles são a mais clara personificação do ideal martiano traduzido no lema Pátria es Humanidad.

*José Reinaldo Carvalho é jornalista, editor do Portal Vermelho e secretário nacional de Comunicação do Partido Comunista do Brasil.