O som e a fúria no sertão do Recife

O cinema de Kleber Mendonça Filho, O Som ao Redor, filma a decadência do engenho pernambucano.

Por Enéas de Souza (*)

O Som ao redor

1 – Por que o som se coloca como a carne decisiva deste filme, subjugando a imagem, a ponto de paralisá-la e levá-la à iminência de uma explosão?

2- Por que o espaço, por onde este som transita e sonoriza e invade e sitia as pessoas, compõe o outro elemento da dialética deste cinema inquietante?

3 – Som e espaço, no cinema, requerem uma história, uma intriga. A narrativa do filme de Kleber tem um alvo: pensar a decadência do engenho. E filma que mundo saiu dali e que o cineasta exibiu como uma vitrine e uma cirurgia. Vitrine por causa da necessidade de exibir, com realce, o drama dessa classe. E cirurgia por causa do sutil recorte de sua mostra, separando o refinamento e a degradação.

4- Então, para preencher esta distância entre algo intangível, como o som, e algo material, como o espaço, é indispensável um roteiro ardiloso. Nesse sentido, o roteiro organiza o espaço em função do tempo. Temos, no caso, o imperial tempo histórico. E o filme capta o momento do depois. Isso significa que existe uma passagem, o trânsito do passado para o presente. Na verdade, há uma ruptura irreversível entre eles, emerge uma interrupção e uma separação. E isso já se dá no lance da cena inicial. O cinema é imagem em movimento. E tudo começa em O Som ao Redor com uma sucessão de planos fixos. E planos que são fixos porque são planos de fotos. E a foto é o congelamento da imagem em movimento, um mundo que não se move mais. Ocorreu, sente-se o clima, uma petrificação do tempo. Aconteceu um deslizamento; o tempo da casa grande parou.

5 – Sim, o tempo parou. E o som, que na primeira cena não é um som ambiental, vale como um som crítico. Tece um ritmo sonoro de tensão dramática, uma chamada de atenção para um evento singular, inédito, que interrompe a duração do tempo, trata-se de um momento de ruptura, anunciando um outro tempo do tempo, o tempo da migração. Migração para um novo espaço, a lenta e inexorável decadência da família patriarcal.

6 – O roteiro é astucioso, tem parentesco com o ardil. Primeiro, joga essa família num mundo de classe média, num bairro do Recife e numa rua contemporânea de mazelas urbanas. É uma família rica: seu Francisco (Waldemar José Solha), tio Anco (Lula Terra), João (Gustavo Jahn) e Dinho (Yuri Holanda) vivem cada um no seu espaço isolado. Vivem bem, moram em apartamentos amplos e luz clara, cada um por si, articulados, entretanto, pelo fio elástico da riqueza de imóveis. São, e continuam a ser rentistas. Só que, no salto do espaço, o poder mudou. O avô, o patriarca, seu Francisco, deixou de mandar no mundo e passou a mandar na rua. De fato, já não manda mais, sabe que não, mas continua a exercer sua chefia, um tanto pela metade. Como serpente cuja cabeça vai ser cortada, seu Francisco comanda o grupo. O que se vê nessa família é a dispersão dos seus membros e a solidão do patriarca. Magnífica a cena quando, de noite, ele sai do seu apartamento, caminha, completamente só, entre luz e sombras na rua que chega até a praia e mergulha, aprisionado pelo tempo, nas ondas do mar. É o patriarca e uma classe marcados para morrer. É o espaço e o tempo se combinando para transformar a História.

7 – Pois, a família rural entra no universo urbano como uma classe já decaída, decadência que se evidencia pelo contraste quase desabusado com uma família de classe média urbana. Família clássica porque o pai trabalha e a mãe é do lar e vive uma vida ociosa, derramada e fútil. O lugar onde eles habitam é tremendamente inquietante, é tomado por um cachorro que late sem parar. Essa família mora num apartamento cheio de grades, banhado por uma presença de luz e sombra que promove a densidade de um tom melancólico. A existência dessa mulher (Maeve Jinkings) é guiada pela insônia, pelo afastamento do marido, pelo cuidado e controle dos filhos, pela rusga permanente com uma vizinha, pela imaginária e sincopada masturbação com uma máquina de lavar roupa, pelas tentativas agrestes de deter os latidos do cão, etc. (São cenas vigorosas que se impõe ao personagem: a cena da compra de droga e a posterior atividade sexual solitária; a cena de exaustão da mãe deitada no sofá, quando a filha dança com os pés sobre as costas dela; as cenas hitchcockianas de Bia, na janela indiscreta, a tentar pôr fora de combate o cachorro da vizinha; etc. E a cena do sonho da invasão de homens desconhecidos.).

8 – Como disse, o roteiro vende a astúcia para colher a verdade. Tudo isso se passa numa rua de bairro, no correr das coisas. Há como que um rio urbano decretando as pequenas perturbações do cotidiano. O som invade o máximo possível, começa com o latido do cão, prossegue sua devastação com o som dos automóveis, das batidas de carro, do risco de objeto contundente na traseira de um Mercedes, do som berrante da música de um vendedor de Cds, do som das televisões, etc., etc. Na verdade, no movimento e no barulho da cidade, observa-se a classe que derrotou a casa grande. Ela é proprietária do capital e se expressa pelo lugar onde a classe rural vai ser derrotada: o ambiente onde brilham as mercadorias do capital imobiliário. É nele que esse puxa a desordem do som, do tráfego, da noite, dos assaltos, etc. E a direção do cineasta saca todo esse mundo. De um lado, vai mostrando a derrota da família da casa grande. Vende apartamentos, onde o vazio desses espaços revela a nulidade de sua transmissão, de sua existência. E o interessante é que quando João está vendendo um, a compradora vai abrir o janelão da sacada. E a arte da direção e da montagem de Kleber Mendonça Filho nos diz que o horizonte da família patriarcal (mas também o da família de classe média) está bloqueado pela presença inquietante – plena de mal-estar – de algo estranho: essa massa de edifícios que está ali como uma ameaça insuspeita e mortal. Já sabemos: é a face assustadora e indiferenciada da Recife dos imóveis. O capital vai destruindo seus inimigos.

9 – O cineasta trabalhou bem esse roteiro. O tempo pára a casa grande no campo e ela se transfere para a cidade. Vive a efetiva perda do poder e tem a nostalgia do tempo passado. Percebe, com dificuldade, a impossibilidade da herança de sua forma de vida já desenlaçada. E o cineasta arma duas situações no seu roteiro e na sua mise-en-scène para descortinar essa realidade. Há um momento em que seu Francisco tem esperança que João e Sofia (Irma Brown) possam continuar a trajetória do engenho. É o instante do retorno ao lugar das coisas perdidas. E são admiráveis as cenas no porão da casa grande. Os lugares em trevas são quase desmaterializados pela invasão da luz. E tornam-se gravemente fantasmáticos com os intensos passos no chão do andar superior. O lugar está todo morto como a sala de cinema daquele passado. O filme vai assim deixando um realismo banal para atingir a dimensão poética dos gritos de seu Francisco e João, acompanhados de Sofia no banho da cachoeira. Gritos de animalidade perplexa, de dor e de fúria diante do tempo que já não compreendem mais e que os desfigura através da água rompendo as linhas nítidas do corpo.

10- E, claro, havia esperanças em seu Francisco: João e Sofia cultivam um amor carnal, íntimo, cúmplice. Contudo, sem futuro. E, de novo, a arte de Kleber Mendonça Filho: duas cenas a amparam fortemente. De um lado, aquelas em planos fechados, do enlace físico do casal, quando o cineasta trabalha horizontalmente a corporeidade do encontro. Banha uma luz que vem da matéria dos corpos, da nitidez de sua existência nua. De outro lado, uma segunda cena: o retorno à casa que Sofia havia morado. É outra e renovada vez o vazio do lugar.

11 – Com isso, a ontologia histórica do autor nadifica tudo, canta o deserto da casa grande, imobilizada para sempre na cena inicial do filme. Esse nada atravessa por onde a família patriarcal passa: os apartamentos desnudos, a luz e os passos fantasmas na tentativa de ressurreição do engenho, a filiação encerrada com a interrupção da relação de João e Sofia. E há mais, há a cena final da película.

12 – O capital e seu representante imobiliário desorganizam o mundo da cidade. Cada vez mais. E a Recife contemporânea vive o surto e o susto noturno desse capital. Da presença da massa de imóveis, via som, via turbulência nas ruas dos bairros, a liderança da sociedade deságua uma solução: a firma de segurança. Ela se instala num dos cantos do bairro, irmã de calçada das câmeras de vigilâncias dos prédios. E passa, violência incubada, a dominar e controlar as casas e os apartamentos da região. (Há uma cena forte quando o personagem de Irandhir Santos, Clodoaldo, apropria-se de uma casa e tem uma relação amorosa com uma empregada das cercanias. Há um corte surpresa, um pouco a David Lynch, quando passa uma figura dramática no corredor do quarto onde se encontram os amantes.)

13 – Vem de leve a surpresa, essa turma da segurança vai dar o golpe definitivo – e provocar a morte do patriarca. Corta-se a cabeça do pai da casa grande. E anuncia-se uma outra cena admirável. Há uma festa de aniversário na residência do tio Anco. Depois de uma bela canção de parabéns, a dona de casa da família de classe média arma uma bomba de fogo de artifício para comemorar o episódio. A festa se instaura e a bomba está para explodir. O cineasta organiza a metáfora fatal. Seu Francisco sai mais cedo do festejo e combina com Clodoaldo uma conversa em seu apartamento. O objetivo é muito claro: quer contratar os seguranças para sua proteção pessoal, porque um dos seus capangas foi morto por desconhecidos. Sente intuitivamente que o perigo chega perto de sua figura. Só que dois membros da firma de segurança que vão à casa do chefe patriarcal tiveram parentes (pai e tio) mortos pelos capatazes da casa grande. Temos, é claro, o momento da metáfora: a bomba do fogo de artifício transporta a idéia derradeira: a bomba explode. E é o tiro da firma de segurança que termina com seu Francisco, com o futuro da classe rural. O poder, o poder da violência agora está com outra classe. É óbvio que não é o da classe média. Em substância, a firma de segurança funciona como a forma visível do poder invisível – no filme – dos construtores dos prédios.

13 – Finalizando, é importante dizer que Kleber narra uma história singular. Procura filmar o universal dessa história, a falada História. Só que na singularidade do evento. Seu cinema começa com um roteiro com multipersonagens e multivozes. Todos os elementos da narrativa em termos de imagens são utilizados. E tudo começa no uso do corpo. Rosto, cabelos, vozes, gestos, etc., compõem a construção social e moral dos personagens. Trabalha o cinema, o cenário como um elemento decisivo, definidor das pessoas dramáticas. Falamos disso: apartamentos, objetos, edifícios, sofás, camas, etc. Tudo está a serviço da direção de Kleber. Dois elementos preponderam. Trata-se de um filme onde o som e o espaço fazem e constroem o sentido do roteiro, da história, da intriga. E certamente, o som se torna o móvel ficcional que faz avançar a narração. De fato, ele é o magma desse cinema. Arquiteta e marca a explosão definitiva da realidade ficcional e assinala a passagem de um período histórico a outro. Sem dúvida, a luz e as sombras têm importância como organizadoras de planos e cenas. Trabalham a construção da verdade da ficção cinematográfica. Agora, digamos bem, o ritmo e o sentido dessa história são movidos pela dinâmica do som, que principia na precipitação da sucessão de fotos da cena inicial e culmina na explosão final da casa grande, com a morte do patriarca. Mas, ao mesmo tempo, o som dá aquele tom de estranhamento, de inquietação, de irritação, de uma realidade histórica, cuja clareza está longe ser de todos. O som – por exemplo, o latido do cão – exerce a ponta aguda que nos causa incomodação, familiaridade e estranheza. Como Sartre tinha claro, a história do capitalismo se faz sem que a gente tenha consciência de seus movimentos. O Som ao Redor inventa, com a ficção, um acréscimo no conhecimento da história do mundo contemporâneo. Podemos, então, dizer, combinando Faulkner com Guimarães Rosa: temos o som e a fúria no sertão do Recife.

(*) Autor de “Trajetória do Cinema Moderno” (2007). E co-autor de “A Tela e o Divã” (2011); este artigo foi publicado na revista TEOREMA n° 21, com modificações.

Fonte: Sul21