Rússia e China lidam com o futuro do Mali 

No Conselho de Segurança da ONU a Rússia e a China transigiram com a agressão à Líbia, condenaram a agressão à Síria, e agora não se pronunciam claramente acerca de intervenção francesa no Mali. 

Por M. K. Bhadrakumar*

Soldados malianos guardam palácio presidencial em golpe de 2012 - CBC.ca

Interpretar este lamentável ziguezague ajuda a compreender melhor a complexidade da evolução da situação mundial, e a crescente ambição da ofensiva imperialista em curso.

Diz o adágio que “dos escaldados nascem os avisados”. Rússia e China afirmam que ficaram escaldados quando o Ocidente virou de pernas para o ar a resolução 1973 do Conselho de Segurança das Nações Unidas e avançou com a invasão da Líbia. Moscou e Pequim contornaram a questão quando o Ocidente tratou de fazer na Síria o mesmo que tinha feito na Líbia. Quando o Ocidente apresentou sucessivos projetos de resolução sobre a Síria, bloquearam o assunto.

Por isso constitui uma surpresa que os dois países perdessem a cautela e se tivessem deixado enrolar outra vez, agora no que diz respeito ao Mali.

Curiosamente, Moscou e Pequim ainda não fizeram comentários sobre a intervenção francesa no Mali, que saltou para a ribalta como fato consumado e que se transformou rapidamente numa ação ocidental concertada [em janeiro]. A mãe de todas as ironias é que a ação no Mali é de muitas formas o resultado direto da intervenção ocidental na Líbia, que Moscou e Pequim condenaram como ilegal.

Todavia ainda é cedo, e a ideia em Moscou e Pequim pode ser esperar e ver o que acontece. Peritos russos e chineses consideram que a missão francesa vai ser prolongada e improdutiva.

Entretanto Paris fez uma surpreendente afirmação no sentido de que Moscou “se propôs fornecer meios de transporte” para a instalação de tropas francesas no Mali. A Rússia não confirmou nem desmentiu essa afirmação, que teve lugar [em janeiro] depois de uma conversação telefônica entre os dois ministros das Relações Exteriores.

Sem dúvida, a intervenção ocidental no Mali tem implicações para a política das grandes potências e para a coordenação da Rússia com a China no que diz respeito a temas regionais. Sem dúvida, há implicações para a “Primavera Árabe” – e também para Síria a curto prazo.

A França afirma que respondeu a um pedido de ajuda do governo estabelecido no Mali. Mas em março do ano passado o Mali sofreu um golpe militar, dirigido por um oficial formado nos EUA, o capitão Amadou Haya Sanogo.

Embora fosse um modesto capitão, Sanogo foi um frequente visitante dos EUA – nada menos de sete vezes nos últimos oito anos. É seguro que Sanogo tem poderosos patrocinadores estrangeiros. Desde março o Mali tem tido tantos golpes e contragolpes que já se perdeu a conta, e todos eles levados a cabo por um exército que foi armado e treinado pelos EUA.

Portanto, a França faz uma afirmação falsa no que diz respeito a um convite formal feito por um governo legítimo. Nem sequer se preocupou em pedir um mandato da ONU. A resolução do Conselho de Segurança de dezembro passado foi específica ao outorgar mandato a uma força africana dirigida por africanos, e o que se esperava era uma expedição a iniciar-se à volta de setembro de 2013, quando fosse concluído pela ONU o seu treino e equipamento.

Entretanto, a retórica já obscurece a dura realidade. O primeiro ministro britânico David Cameron disse: “Estamos enfrentando um grupo terrorista extremista, islamita, vinculado a Al Qaeda. Quer destruir o nosso modo de vida, crê em assassinar tanta gente quanto possa. Tal como tivemos que enfrentar algo semelhante no Paquistão e no Afeganistão, da mesma forma o mundo tem que se unir para enfrentar esta ameaça no Norte de África."

E continua: "trata-se de uma ameaça global e requererá uma resposta global. Requererá uma resposta que tem que ver com anos, inclusivamente décadas, em lugar de meses. Requer uma resposta paciente e responsável, dura mas também inteligente, mas que sobretudo tenha uma determinação absolutamente férrea e isso o que iremos concretizar no decurso dos próximos anos.”

Reconquista total

Naturalmente, as potências ocidentais estão cerrando fileiras. O Pentágono revelou que o seu avião militar C-17 tem transferido soldados e equipamentos franceses e que estáconsiderando a mobilização de aviões cisterna.

O secretário de Defesa dos EUA, Leon Panetta, disse que os EUA estão disponibilizando inteligência. A Itália está enviando dois aviões de transporte C-130 e um Boeing KC-767A, e está delegando entre 15 e 24 peritos para o Mali. O Canadá enviou um avião de transporte militar de carga pesada e o Reino Unido fornecerá “ajuda logística aérea”.

A força francesa consiste em 2.000 militares, e Paris vai enviar outros 500. O ministro da Defesa Le Drian disse: “O objetivo é a reconquista total de Mali”. Fez eco da declaração do presidente François Hollande de que as tropas francesas permanecerão no Mali todo o tempo que seja necessário para derrotar o terrorismo.

Entretanto, o fantasma de Al Qaeda é exagerado. O conflito no Mali parece mais uma guerra civil baseada em agravos que existem há muito tempo e que apenas podem ser enfrentados por um governo legítimo e estável, mediante meios de governação local e descentralização e de um programa sustentável de desenvolvimento econômico.

Um destacado perito na região, Evgueni Korenddyasov, que serviu como embaixador da Rússia no Mali e atualmente dirige o Centro para as Relações Russo-Africanas na Academia Russa de Ciências em Moscou, disse: “A solução só poderá ser encontrada através de conversações sobre maior autonomia e representação para os tuaregues”.

Os organismos regionais (a União Africana e a Comunidade Económica de Estados Africanos Ocidentais) procuraram efetivamente obter da ONU um pacote exaustivo que fizesse face à crise política no Mali, e o Conselho de Segurança reconheceu devidamente a necessidade de uma reconciliação política, mas de um dia para o outro a tônica passou para a ação militar ocidental.

Existem dúvidas sobre as verdadeiras motivações. É verdade que grupos de Al Qaeda, que foram armados pelas potências ocidentais e que serviram como peões durante a “mudança de regime” na Líbia, se espalharam pelos países vizinhos. Para além da Argélia e do Mali, pelo menos cinco outros países da África Ocidental poderiam ser afetados – Mauritânia, Gana, Níger, Burkina Faso e Nigéria.

Entretanto, existe todo um período de história moderna no qual o Ocidente utilizou por um lado as forças do Islã radical para propósitos geopolíticos (por exemplo Afeganistão, Líbia e Síria), enquanto em outras ocasiões essas mesmas forças desenvolviam resistência perante invasões militares ocidentais (de novo o Afeganistão).

O Mali estende-se por uma vasta região de África rica em recursos de petróleo, gás, ouro, cobre, diamantes e urânio. As centrais de energia nuclear de França são abastecidas a partir das minas de urânio do Níger, vizinho do Mali. A França tem sem dúvida importantes interesses estratégicos e econômicos na região e têm-se exprimido dúvidas sobre se a sua intervenção no Mali será outra coisa mais do que uma empresa neocolonial. O Arcebispo de Acra qualificou-a como “intento de colonização”.

O que é suficiente para dizer que a intervenção do Ocidente no Mali deveria ter provocado uma reação da Rússia e da China, que não se verificou. Poderia haver três considerações principais na mente russa para esse fato. Primeiro, as relações da Rússia com as potências europeias já são tensas e Moscou hesitaria em exacerbá-las.

Segundo, o  Mali é, ironicamente, a Síria ao contrário. A Rússia tem sérios interesses geopolíticos na Síria, enquanto o Mali e a África ocidental e setentrional constituem o pátio traseiro de Europa. É interessante que Paris (que adotou uma posição estridente no que diz respeito à Síria) tenha sentido a necessidade de se aproximar de Moscou em relação ao Mali.

Também a partir de uma perspectiva ideológica, a Rússia e o Ocidente vêm-se repentinamente dizendo a mesma coisa relativamente ao aumento do islamismo no Oriente Médio e no Norte de África depois da "Primavera Árabe".

Ânsia por minerais

A China, pelo contrário, tem outros profundos pensamentos – principalmente, o seu conflito de interesses com o Ocidente na África. A ansiedade em Pequim é evidente numa crítica cáustica da intervenção do Ocidente no Mali no Global Times. Foi escrita por He Wenping, diretor de Estudos Africanos do Instituto de Estudos Asiáticos Ocidentais e Africanos que pertence à Academia Chinesa de Ciências Sociais.

Escreveu: “A China tem certos interesses no Mali devido aos seus projetos de investimento. Não é necessariamente algo de negativo para a China uma vez que a decisão francesa de enviar os seus militares pode estabilizar a situação… Entretanto, e apesar de todas as vantagens potenciais, há uma razão possível de alarme – as forças francesas. A participação de forças francesas no Mali irá proporcionar a justificação para a legitimação de um novo intervencionismo em África. Os interesses econômicos diretos da França no Mali não podem ser subestimados… Uma das desvantagens desta acção é que traz à memória a 'Gendarmerie Africaine' – o estatuto colonial de França.”

A grande pergunta é se as ações de política externa coordenada de Moscou e Pequim incluirão também o teatro africano. Depois das recentes consultas russo-chinesas de 9 de Janeiro em Pequim, sobre segurança estratégica, o secretário do Conselho Russo de Segurança Nikolai Patrushev revelou que os dos países planejam intensificar a sua cooperação na defesa de mísseis, como resposta aos crescentes avanços dos EUA.

Patrushev disse: “Preocupam-nos os planos dos EUA de construir um sistema global de defesa de mísseis, incluindo na região de Ásia-Pacífico. Os nossos parceiros chineses compartilham as nossas preocupações e concordamos em coordenar as nossas ações a esse respeito.”

Entretanto, a China tem muito maiores interesses na África do que a Rússia. Ultrapassou os EUA e a Europa como o maior parceiro comercial de África (160.000 milhões de dólares) e as suas empresas investiram 15.000 milhões no continente só no ano passado. A China interessa-se por minerais em países africanos ocidentais, setentrionais e centrais e petróleo de África ocidental. Produtos agrícolas do Chade, Mali, Benin e Burkina Faso fornecem a massiva indústria têxtil da China. A África ocidental é também um importador-chave de produtos chineses. A Nigéria figura como o principal consumidor (42%).

Como assinala o artigo do Global Times, Pequim compreende perfeitamente que o Ocidente está se lançando numa estratégia de contenção em África, recuperando simplesmente o controlo das antigas colonias nas quais a China progride. O ponto é que o Ocidente não pode competir com a China igualando a sua oferta de uma relação mais amplia com as nações africanas.

Os projetos transcontinentais da China tomam a dianteira no caminho no sentido da criação de blocos econômicos regionais, que aumentam a capacidade das nações africanas de criar espaço face às potências ocidentais e negociar melhor. Em resumo, o fantasma que persegue a Ocidente não é tanto Al Qaeda como a sua incapacidade de igualar a oferta chinesa de uma negociação ampla e de uma relação ampla com os Estados africanos.

A política russa na África carece, em comparação, de enfoque e interesse sustentado. Para citar a Irina Filatova, destacada perita russa em África: “A Rússia está interessada em desenvolver relações econômicas com a África mas não tem muito para oferecer. E quando tem algo para oferecer, não sabe como fazer.”

É certo que o ex-presidente e atual primeiro ministro Dmitry Medvedev procurou inverter a tendência e nomeou um enviado especial para assuntos africanos, a fim de injetar nova energia e conteúdo à diplomacia russa. Depois de uma visita à Nigéria Medvedev queixou-se de que a Rússia está “quase demasiado atrasada” na sua atividade na África.

A ação militar ocidental no Mali poderia ser uma chamada de atenção para Moscovo no sentido de que nunca é demasiado tarde na vida e na política.

O embaixador M. K. Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da India. Exerceu funções na extinta União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

Fonte: Asia Times
Tradução do Portal O Diário