Marcos Aurélio Ruy: Por que ensinar música nas escolas? 

Dois livros recém-lançados tentam responder a essa questão ao defenderem uma escola voltada para as questões humanas.

Por Marcos Aurélio Ruy* 

De Anísio Teixeira a Paulo Freire, a educação brasileira tem passado por intrínsecas mudanças no transcorrer do tempo. Dois livros tratam do assunto ao referir-se a temas candentes da educação contemporânea. Um apresenta um panorama histórico da educação musical no país e outro trata da questão da escola ser afinada com os interesses da comunidade na qual s insere para ajudar a superar mazelas.

Rita Fuccdi-Amato (foto ao lado), autora de Escola e educação musical: (des)caminhos históricos e horizontes, Editora Papirus, relata o desenvolvimento histórico do ensino de música no Brasil, desde a sua inserção na colônia, através da igreja católica, voltado para poucos até a lei atual que determina a educação musical como “disciplina escolar e política pública educacional”, afirma Rita e acrescenta que “não se trata de divulgar a cultura erudita”, mas “trata-se de abrir espaço ao que o aluno, em seu contexto, pouco conhece e fomentar o pensamento crítico quanto ao já conhecido, mas muitas vezes não suficientemente percebido”, afirma Rita.

Em sua pesquisa, a autora apresenta um panorama de como o ensino da música entrou no Brasil, sendo voltado no início para a elite e para ensino de piano a moças de “boa família”, ou seja, ricas, como forma de entretenimento e adorno e sempre fora do contexto escolar. Segundo Rita, “apenas algumas décadas após a Independência é que a música começa a constar como disciplina na escola regular” e, dessa forma, conta ela, “a educação musical cresceu como prática metódica e sistemática à moda europeia” e voltada somente para a elite branca.

Mudanças

A histórica começa a mudar quando, acrescenta Rita, o maestro Heitor Villa-Lobos assume cargo no governo de Getúlio Vargas e institui no canto orfeônico como matéria curricular. O maestro dizia que “um povo que sabe cantar está a um passo da felicidade” e conclamava: “é preciso ensinar o mundo inteiro a cantar”.

Escola e educação musical: (des)caminhos
históricos e horizontes, Editora Papirus, autora Rita Fuccdi-Amato.

Para Villa-Lobos o ensino de música deveria enfatizar a brasilidade e “afirmar a identidade nacional”, por isso, deveria ensinar também música popular e para todas as crianças e jovens. O movimento Escola Nova, pouco antes de Villa-Lobos, defendia que “a arte deveria ser retirada do pedestal em que se encontrava e colocada no centro da comunidade”, para os integrantes desse movimento “o ensino de música não deveria restringir-se a alguns talentosos, mas ser acessível a todos”, assim “contribuindo para a formação integral do ser humano”. Os escolanovistas “pregavam a necessidade de uma arte útil, como ferramenta essencialmente social”, explica Rita.

A autora mostra como a educação musical foi implantada, seus objetivos e como e porque foi retirada do currículo escolar nos anos 1970, pela ditadura civil-militar de 1964. Principalmente porque passou a predominar uma visão tecnicista do ensino onde prevaleceu a intenção em formar mão de obra para o mercado de trabalho. E ainda prevalece em muitos casos.

Maíra Soares Ferreira, escritora de A rima na escola, o verso na história, Editora Boitempo, apresenta sua pesquisa desenvolvida com jovens da favela Real Parque no bairro do Morumbi, com alunos de 13, 14 anos, no final do ensino fundamental. Ela escolheu trabalhar com essa comunidade por a favela estar inserida num bairro “nobre” da capital paulista. Ali viu descendentes dos índios Pankararu e de nordestinos. A educadora sentiu a forte penetração do movimento hip hop na comunidade e completa identificação dos jovens com a poesia do rap (expressão musical do hip hop) e aprofundou sua pesquisa ao ligar esse movimento urbano e contemporâneo ao cordel nordestino, percebendo ligação temática entre as duas formas de expressão populares.

Articular conhecimentos

Na apresentação Mônica Teixeira Guimarães Amaral acentua que o livro de Maíra ”não apenas nos oferece um método de trabalhar em sala de aula em torno do verso e da poesia popular enraizada na cultura dos alunos na sua maioria descendentes afro-indígenas do sertão nordestino – como ns permite compreender que o sofrimento imposto a uma parcela significativa da população não a impediu de criar cultura como forma de resistência”. A autora acentua ainda que foi ficando claro para ela como o desenvolvimento dos trabalhos que “aqueles jovens afro-indígenas paulistanos são herdeiros de um processo sociocultural nordestino que envolve desde a violência e a segregação das diásporas até a criação poética e musical presentes tanto nas histórias de improviso do sertão quanto nas expressões juvenis e urbanas da sala de aula da metrópole paulistana”.

Por isso ela defende “uma educação problematizadora capaz de articular o conhecimento acumulado a uma leitura crítica da situação vivida pelos alunos”, em cujo teor acrescenta o entendimento da “criação poética como forma de resistência cultural contra o esquecimento (induzido) e a amnésia de todo esse passado repleto de contradições e renovações das culturas populares”, reafirma.

A educadora mostra também a necessidade de termos um ensino voltado para a nossa realidade e concomitante com os anseios dos alunos. Por isso, defende a implantação efetiva do ensino da história dos negros brasileiros como determina a lei e de um ensino voltado para os interesses da comunidade que ajude os jovens a superar suas mazelas e compreenderem-se com agentes transformadores da história, mostrando-lhes a necessidade de conhecimento para atingirem seus objetivos de vida. 

“Compreendi que aceitar os problemas escolares, refletidos nas dificuldades dos alunos, sem um julgamento moral e discriminatório pode fortalecer o grupo e, com isso, possibilitar um maior contato com as problemáticas vividas coletivamente”, acrescenta Maíra. Ela pesquisou profundamente o cordel nordestino e viajou par a região para isso e descobriu pontos em comum com a poesia do rap, expressão musical do movimento hip hop. Em cima dessa descoberta aprofundou as atividades escolares com atividades voltadas para a escrita do cordel e para o protesto musical do rap. Porque para ela, tanto um quanto outro nasceu da necessidade de resistência cultural de parcelas marginalizadas da população.

A rima na escola, o verso na história, Editora
Boitempo, autora Maíra Soares Ferreira.

Há relatos no livro que demonstram sua tese com eficácia. Uma aluna contou que “um dia fomos ao teatro. Fizemos bagunça, mas todo mundo que estava lá estava zoando, não era só a gente. Só que um moço pegou o microfone só para falar “várias” da periferia, falou supermal”. Outra conta que “todos riem” quando ela diz ser nordestina. Numa intervenção de um grupo de meninas em sala de aula há a afirmação de que “as pessoas deviam ter consciência do que fazem porque nosso país é feito de mistura e nessa mistura existe a raça negra”.

Como no poema de um grupo de alunas:

Ao sair da classe, pensamos
Vamos fazer um cordel
Resumir nossa conversa
De maneira bem fiel
Pros alunos do Alcântara
Acompanharem no papel

A história começou
Quando um dia fomos contar
Do sarau da Cooperifa
Onde vão rimar
Os rapazes “hip-hoppers”
Que são bons para cantar!

Começou o intervalo
A turma toda dispersou
A Mayane inteligente
Logo se interessou
Com a amiga Tati
Correu e o livro buscou

A colega Andressa
Entusiasmada nos contou:
“Sou filha de nordestinos,
Isso sim é o que sou!”
E desafio eu sei o que é!
Ela logo explicou…

É como uma batalha:
Uma frase um soltava
E outro, desafiando,
Uma melhor denunciava.
Importante era encontrar
A palavra que rimava!”

Escolhemos até um mote
Dizia ele que é mentira
Que lá na periferia
Só aparece quem atira
Pois decidimos que a rima
Essa sim que nos inspira

Depois veio a ideia
Que também não é verdade
Que lá na periferia
Só tem é a maldade
Afinal, estamos aqui
Buscando a felicidade!

Lucas acrescentou…

E que quem nasce por lá
Logo cedo é ladrão
A colega então falou:
“Ei, aqui tem é cidadão!”
E a outra respondeu:
“ABAIXO A DISCRIMINAÇÃO!”

O cordel que é do passado
Do presente também é
E na rima do rap
É que temos muita fé
Os dois são bem brasileiros
Assim como o café

Jefferson, muito curioso,
Virou e perguntou:
“O que é o tal do MC?”
Tati no livro pesquisou!
“Mestre de Cerimônias”,
Foi o que ela encontrou!

Esse foi nosso cordel
Feito em sextilha
Para a 7.a séria A
Que conosco compartilha
Conhecimento e alegrai
Nos deixando bem na pilha.

Chico Buarque canta que teve que fugir da escola para aprender a lição, na bela canção Meu refrão, para mostra uma realidade cruel, na qual a escola era para poucos e, portanto, distante da realidade da maioria. Nos últimos anos tem havido grande discussão sobre qual escola queremos relegar às futuras gerações. Que tal começar então por inferir 10% do Orçamento da União mais 50% dos rendimentos do pré-sal para a educação, com defendem as entidades do movimento estudantil? Seria um bom começo.

Também se deve colocar a educação no centro dos debates nacionais de mudança do país. Com instauração do período integral em todas as escolas do ensino básico ao médio, juntamente com a compreensão de que o ensino de artes deva ser tão valorizado como o de qualquer outra matéria curricular. Outro bom começo para o pleno desenvolvimento cognitivo e emocional de crianças e jovens. Estas questões estão presentes em Ambos os livros, para o quais a escola tem que dar um giro de 180 graus para realmente incluir e ensinar. Como diz Alípio Casali “na escola, a aprendizagem poderá ser puro ritmo e poesia”.

Livros 

Escola e educação musical: (des)caminhos históricos e horizontes, Rita Fucci-Amato, Editora Papirus, Campinas (SP), 2012

A rima na escola, o verso na história, Maíra Soares Ferreira, Editora Boitempo, São Paulo, 2012

*Marcos Aurélio Ruy é colaborador do Vermelho.