Elias Jabbour: Eu, o Chorão e as drogas

Infelizmente é assim. É necessária a morte de algum famoso para que a discussão sobre as drogas venha à tona com força. Desta vez a vítima foi um cantor bem sucedido, mas que sucumbiu perante a própria existência. Sucumbiu perante um sistema que ataca no núcleo do que há de mais interessante na vida. A vontade de viver.

Por Elias Jabbour*

Chorão claramente era uma figura diferente. Irreverente, peito aberto, dizia e fazia o que bem entendia. Curto e admiro gente assim. Talvez devesse ser a forma como ele reagia a um sistema que condena o individuo a pobreza da padronização, criando robôs a serviço da manutenção da própria decadência do indivíduo. O isolamento e a dor é o primeiro sintoma individual desta decadência. O uso de drogas é somente a ponta do iceberg da produção em escala industrial de humanos desumanos.

O capitalismo está afundando e levando a essência humano ladeira abaixo. A desumanidade expressa uma grande luta onde a derrota do indivíduo pela lógica do capital é quase certa. Não existe espaço para todos no banquete do sistema. O mito do self made man deu lugar ao monopólio. A realização humana pela via do acúmulo de bens materiais vai se transformando num circulo nada virtuoso onde o cartão de crédito é mais interessante do que a visita a um amigo ou vizinho doente. E todos estão adoecendo, extensão da possível vitória da barbárie sobre a superação da miséria humana.

É essencialmente na busca pela realização material que tropeçamos em alguma pedra no caminho do crescimento pessoal. Nossas vontades nunca serão plenamente realizáveis e esse fato é suficiente para provocar dor. É fato que nem sempre as pessoas ao nosso redor vão realizar nossos desejos, vontades e dar conta de nossas ansiedades. As coisas não estarão sempre ao nosso alcance e o que pode restar é uma relação de plena doença entre o individuo com o seu redor e consigo mesmo.

Chorão, assim como milhares de pessoas que morrem diariamente em decorrência de certos hábitos, estava doente, com suas necessidades em grande parte não realizadas. A pergunta que não devemos ter medo de responder é se as drogas são capazes de saciar determinadas formas de demandas emocionais. Infelizmente, respondo que sim. Se fosse o contrário não existiria necessidade de linhas fordistas ao refino dela. Trata-se de uma fuga capaz de gerar paixão e como toda paixão ela pode ser fatal. E foi. Tem sido.

Chorão deve ter percorrido o mesmo caminho que percorri numa fase intensa da minha vida: insatisfação com o mundo ao redor, falta de autoaceitação, autopiedade e ânsia para viver o aqui e o agora. Como eu, Chorão deve ter sentido uma paixão enlouquecedora, capaz de fazer simplesmente tudo por mais um pico, mais uma carreira esticada. Como eu, e muitos, Chorão queria ela só para ele. Isolava-se do mundo e de todos. Num certo momento ela ia embora e a depressão chegava de forma avassaladora, impiedosa. Longe dela só a morte tinha sentido. E perto dela a sensação de morte estava próxima. É a mesma história de sempre, mudando somente os personagens.

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Mantive, por muito tempo, uma relação de amor e ódio com as drogas. Como Freddie Mercury disse certa vez: “Ela me enlouquecia. Nosso amor chegou a um ponto, que já não conseguia viver sem ela. Mas era um amor proibido. (…). Fiquei louco. Eu a queria, mas não a tinha. Eu não podia permitir que me afastassem dela. Eu a amava: bati o carro, quebrei tudo dentro de casa”. E posso dizer que fiz, sim, tudo isso! No concreto, me transformei em alguém que nunca gostaria que fosse.

Mas será que todos os que estão ainda nessa devem ser condenados a uma morte lenta, segura e desmoralizante? Digo que não. Por mais difícil que seja viver longe de uma paixão, a saída existe e pressupõe a um apelo ao coletivo. Impossível conseguir sozinho e a superação de certas coisas só são passíveis diante de um apelo à vida coletiva. Claro que existe o problema de um Estado que promove faxinas nas cracolândias, repassa mais de 40% do orçamento ao pagamento da dívida pública, corta gastos previstos para combater o crack e se demonstra impotente diante da quebra do tecido social.

Afora isso, existe solução. O mundo não pode ser condenado a se transformar numa imensa cracolândia que se estende desde os vãos de viadutos até apartamentos sofisticados das grandes metrópoles. No plano da experiência pessoal posso afirmar que viver a vida um dia de cada vez pode ser uma saída interessante diante da vontade de se livrar de um amor doentio. O ser humano pode ter uma atitude crítica diante do própria sistema se responder satisfatoriamente ao desafio de crescer ou morrer. Existe vida sim após as drogas. Existe o ponto fora da curva.

E como Chorão, que ganhou a minha admiração por sempre ser o ponto fora da curva num “meio artístico” medíocre e pasteurizado, podemos fazer diferente sem se trancafiar em si mesmo. O ponto fora curva é olhar criticamente para si mesmo. É crescer e não morrer. Vivendo um dia, uma emoção de cada vez.

Elias Jabbour* é geografo e militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB)