Distraídos nos perderemos

O recém-lançado pela Companhia das Letras "Toda Poesia", com mais de 630 poemas de Paulo Leminski, já figura nas listas dos campeões de venda. Este artigo, publicado originalmente no jornal eletrônico Rascunho, relembra o grande poeta de Curitiba.

Por Guilherme Magalhães

Charge de Ramon Muniz

“Dá para falar de Curitiba antes e depois do Paulo.” A frase, do poeta, compositor e professor de literatura Antonio Thadeu Wojciechowski, um dos muitos “da turma do Leminski”, ilustra o sentimento com a morte do “bandido que sabia latim”. Paulo Leminski morreu aos 45 anos, em agosto de 1989. A ausência do poeta não se deu apenas nas estantes das livrarias ou nos grandes debates estéticos dos quais foi porta-voz, mas nas próprias ruas da capital paranaense. Ali, o sujeito desgrenhado, de bigodes fartos, voz alta e etilicamente animado era tão familiar quanto o Calçadão da Rua XV.

Da infância nos quintais do bairro do Batel — hoje um dos metros quadrados mais caros de Curitiba — aos bares e botecos do velho Centro da capital paranaense, o cotidiano de Leminski pode ser acompanhado numa espécie de mapa literário. Existe a Havana de Hemingway, a Lisboa de Pessoa. E a Curitiba do “Polaco”, como era chamado, à semelhança de milhares de outros nascidos na mais eslava das cidades americanas. Nem sempre é fácil relembrar seus passos: aquela Curitiba tão interiorana quanto boêmia, creiam, parece não ter mais lugar na cidade dos 1,3 milhão de automóveis — a maior taxa de motorização do país, e à prova de poesia.

Madrugada, bar aberto

“Leminski vinha quase todo dia, três ou quatro vezes por semana”, conta Milton Soares, garçom há trinta anos do Bar do Pudim, boteco plantado numa esquina de paralelepípedos, nas barbas do Cemitério Municipal. O happy hour, como não se dizia para a vadiagem que começa no fim da tarde, era uma tradição para o Polaco & companhia. Ele costumava chegar perto das 17 horas, para ir embora só depois das nove da noite. Ao entrar, cumprimentava a todos e já dava um toque especial para Milton: “Baixinho, manda lá o meu vinho”. Escolhia sua habitual mesa ao canto, de frente para uma das poucas janelas do bar. “Ele sempre queria enxergar o mundo lá fora”, lembra o garçom.

Foi no começo da década de 1980 que Leminski começou a frequentar o Bar do Pudim. Nessa mesma época, tornou-se cliente assíduo de outros dois bares tradicionais da boemia curitibana: o Bife Sujo e o Stuart, ambos plantados numa antiga zona elegante da cidade, a Praça Osório, mas já transformada em quadra de michês, prostitutas, sem-teto e, claro, os bons de copo.

O dono do Bife Sujo, bar hoje instalado na Saldanha Marinho — uma dessas ruas onde o tempo parou —, César Antônio Wisnievski, diz que muitas das músicas e versos do poeta bigodudo saíram dali. “Leminski ficava mais na dele, sozinho, tomando sua vodca com dry martini, gelo e a casquinha de limão que não podia faltar, sempre escrevendo”, rememora Wisnievski, que ainda guarda nas paredes fotos e poemas emoldurados. São suvenires dos “poetas mais bonitos da cidade”.

Rio ao mar, Curitiba ao bar

Quem se recorda muito bem desse momento é Dino Chiumento, o seu Dino. Ele trabalha no Stuart há nada menos que sessenta e um anos e recorda que Leminski sempre marcava com os amigos, “a turma dos cinco da Livraria Ghignone”, de se encontrarem no bar perto da hora do almoço. O Polaco costumava ser o primeiro a chegar. Instalava-se na mesinha do canto para ficar sossegado enquanto escrevia um pouco, operando sua rebelião particular na linguagem. “Nessas horas, se alguém fosse conversar com ele, não dava papo. Daí os amigos chegavam e ele se soltava. Era um polaco muito boa pessoa”, enfatiza seu Dino.

A “turma dos cinco da Ghignone” era assim conhecida por aglutinar Leminski e outros jovens poetas e escritores na tradicional Livraria Ghignone, encravada na Rua das Flores, onde hoje funciona um desses atacadistas de roupa, sem charme nenhum. Antes assíduos frequentadores do Stuart Bar, por exemplo, os companheiros de poesia e prosa de Leminski hoje são figuras difíceis de se ver por lá. “Parece até que morreram todos”, brinca seu Dino, fazendo teoria, sem querer, sobre a tal da morte da poesia.

Nessa época (início dos anos 1980), o poeta morava numa casa do tranquilo bairro do Pilarzinho, na Zona Norte da cidade, região que ainda hoje conserva traços da imigração polonesa: casas de madeira, fartos quintais e uma ou outra galinha fujona.

As calçadas irregulares da Rua Antônio César Casagrande, porém, sentiram passadas nada tranquilas da turma que frequentava a casa em que Leminski vivia com Alice Ruiz, também poeta, e as filhas Áurea e Estrela. O jornalista e escritor Rodrigo Garcia Lopes integrou o cordão algumas vezes. Ele não passava de um menino, mas cruzava o estado para ter com o poeta. “No Leminski eu encontrei uma possibilidade poética. A convivência com ele me ajudou a entender a poesia como linguagem e não meramente uma expressão lírica”, afirma Garcia Lopes, que hoje mora em Londrina, Norte do Paraná, e edita a revista de poesia Coyote.

Houve quem chegou tarde. No início dos anos 2000, o jornalista paulista Marcos Zibordi se mudou para Curitiba, disposto a refazer todos os passos de Leminski na cidade. Para começar a viagem, alugou uma casa no Pilarzinho. “Eu sabia que ele tinha morado lá, mas não sabia o endereço exato. Aluguei meio sem querer e depois descobri que estava a metros da casa em que ele morou. Até pulei o portão e fiz uma visitinha ao quintal, quando colocaram a casa para alugar”, confessa.

Em 2001, Zibordi assinou uma matéria sobre o Terreiro Pai Maneco, publicada na revista Caros Amigos. Mais uma surpresa: o terreiro — ainda hoje frequentado por artistas — fazia parte do mapa pessoal de Leminski. Um dos pontos ainda hoje cantados nas giras, não por menos, é de autoria dele:

Choramingando as minhas mágoas
Não vou a lugar nenhum
Antes eu gritasse, antes eu berrasse
Chamando por Ogum, Ogum, Ogum.
 

Nos anos finais de sua vida, o poeta, amante dos haicais japoneses, se tornou um habitué da Livraria do Chain — ao lado da Reitoria da UFPR, propriedade do “turco” Aramis Chain —, famosa por ter uma salinha secreta para que leitores sem dinheiro possam “dar uma lida” nos livros.

Na época, separado de Alice, morando no Hotel Elo, apenas alguns passos o separavam de estantes abarrotadas e conversas animadas com o dono da livraria, conhecido por seu relacionamento próximo com os clientes. Chain, que trabalha com livros há cinquenta anos, lembra que política era sempre um tópico especial na “pauta” das conversas com o poeta. “Discutíamos muito a questão das ideologias. Foi conversando com ele a respeito de filosofia e Descartes que eu fui compreender realmente Catatau [primeiro livro de Leminski, lançado em 1975]. Mas o mais importante dessas conversas é que elas me apresentaram o Leminski ser humano. Enxerguei o grande homem por trás daquela poesia visionária”, afirma.

Leminski está sepultado no Cemitério do Água Verde, um dos bairros onde morou. Para evitar a peregrinação de bêbados e poetas, não se sabe ao certo qual é seu túmulo. Nem é preciso. Como se sabe, o Polaco continua por aí.

(*) É jornalista; mora em Curitiba (PR)

Fonte: Rascunho – o jornal de literatura do Brasil