Mirim

Este ano o romance Domingos sem Deus, do escritor Luiz Ruffato recebeu o Premio Casa de Las Américas, em Cuba, na categoria Literatura Brasileira. Vermelho dá aqui uma amostra da qualidade que os jurados, em Havana, apreciaram: Mirim é o primeiro capítulo do livro premiado.

Por Luiz Ruffato

Retrato estudante

Perguntassem – e perguntavam – ao seu Valdomiro, no forró do Centro de Recreação do Idoso, nas caminhanças no Jardim Inamar, no palavrório bem-te-vi no centro de Diadema, o momento mais arco-de-triunfo da sua vida, ele, estalando de felicidade, responderia, despachado, o dia que tirei retrato para a formatura da quarta série, amplo sorriso rejuvenescendo a carapinha grisalha. E os olhos remexeriam os fundos dos fundos dos seus guardados, estufados envelopes pardos, carteiras profissionais e do INPS, receitas e atestados médicos, chapas e resultados de exames de urina e sangue, santinhos e números antigos da revista Placar, a carta lavrando a aposentadoria, a amarelada fotografia: sentado, braços debruçados sobre a mesa, à esquerda uma plaquinha, Grupo Escolar Padre Lourenço Massachio, à direita o globo terrestre, ao fundo, semi-enroladas, as bandeiras do Brasil e de Minas Gerais. Nas costas, o lápis sua letra miúda desenhou

Professora – Dona Sílvia de Azevedo Novaes
Diretora – Dona Inês Letícia de Assis Malta
Rodeiro, 19 de dezembro de 1958

nomes e data que só lia o tato de suas lembranças, tão sumidos. E o perfume terra-molhada atiçaria aquela manhã: Juventina, a mais velha, tocando ele para a escola, Irineu, o caçula, nas escadeiras, Margarete atrás com o embornal e o Tigre, um viralatinha besteiro, banzeando entre as pernas, num infatigável vir-e-ir de contentamento. Então, já havia morrido a mãe, no último parto, e criavam-se com os módicos ganhos do pai na máquina-de-arroz que esticava o correame entre março e maio, escasseando a algazarra pelo resto do ano, empurrando-o para os bicos de ferração de cavalos, bateção de pastos, tomação de conta de gado, castração de cachaço, sangração de porco e garrote. E aos filhos cabia a cada um uma tarefa: almoço, janta e lavagem das roupas, à mais velha; arrumar a casa e pajear o caçula, à do meio; cuidar da horta e levar o caldeirão-de-comida para o pai, ao Valdomiro, Mirim, Mosquito Elétrico que zunia pela cidade vruuum!, Sabe andar esse menino não?, comentavam à sua visagem, Só corre!, vruuum! Moravam numa casa cai-não-cai, barro socado em varas de bambu, sapé, chão de terra-batida encerada com bosta de boi, as meninas enfiadas num cômodo, o pai e o menino no outro, o fogão-de-lenha fumaçando pratos e canecas esmaltados na cozinha, o Coração de Jesus resguardando a salinha nua de cadeiras. Não era a Roça ainda, pois que esta começava para além da fazenda do seu Maneco Linhares, mas cidade também não, ermo cujo vizinho mais perto não o alcançaram os gritos desatinados da mãe, em uma tarde submersa no antes.

Seu Valdomiro desembrulha recordações perambulando pelas estreitas ruas de Diadema, onde pousou, mala de papelão e breve esperança de ajuntar dinheiro e candear os sonhos dos irmãos a uma vida melhor, casa de tijolo-e-laje e comida farta, roupa domingueira e cabeça levantada. As mãos escalavradas possuíam pouco mais de dezoito anos, baixa no Serviço Militar, “reservista de terceira categoria”, braços torneados a mirréis por dia lavourando fumo e milho de sitiantes italianados. O pai, à altura, labutava no governo de uma serrariazinha, um-dois troncos por dia, e a Juventina, casada, esperava o segundo neném lá dela. A Margarete, namoro firme, estumava o rapaz a levar ela embora, olho-comprido no Rio de Janeiro, Quem seguiu, arrependeu não, afirmava, como conhecesse. O Irineu pescava. Percorria léguas, vara pendoada no ombro, faiscando um corgo, um brejo, uma loca. Pegou intimidade com cascudos, lambaris, bagres, carás, piabas, traíras. O Tigre, velho e manhoso, resfolegava coleado, grotas e perambeiras indevassadas, na guarda do dono. E caçava, o Irineu. De-primeiro, alçapões engaiolavam coleiros e canários, curiós e trinca-ferros, sabiás e garrinchas, azulões e joão-penenês, melros e sanhaços; de-depois, na vargem afundava-se à cata de rãs e piriás, nas matas perdia-se no rastro de lagartos e tatus, nos roçados vigiava saracuras, rolinhas, juritis, marrecos-d’água, Esse menino, meu deus, resmungava o pai, atormentado.

É sim, mas já foi mais, seu Valdomiro empurrou a pedra três-quatro do dominó para a rabeira, Quando cheguei aqui, mil novecentos e sessenta e sete, mão na frente, mão atrás, nem blusa direito, o frio abraçava a gente, roía os ossos, uma coisa! Sem conhecimento, boca à boca acercou à porta da Conforja, “a maior forjaria da América Latina”, Jardim Pitangueiras, aquela imensidão de fábrica, Sabe fazer o quê, rapaz? Nada não, mas aprendo logo, o senhor querendo. Mineiro? Mineiro, sim senhor. Entra naquela fila ali. E pouco mais aprumava o peito, carteira assinada no bolso da calça, o pai nem ia acreditar, voltava em Rodeiro, o povo arrodeando ele, roupa de cidade grande, Mas não é que é o Mirim?! Danado, esse menino! Levava presentes para os irmãos, para os sobrinhos, do jeito que é bobo os olhos do pai encheriam de água, É cisco, ô raio!, desconversaria, afastando-se, costas das mãos interceptando o pingo no rosto, Esse meu filho! E pagaria cachaça pra um, cerveja pra outro, encheria as mãos de balas, papai-noel para a criançada pé-no-chão, repartiria pipoca para os sagüis que enxameavam os oitis da Praça da Matriz, o séquito em suas pegadas, É o Mirim… Mirim do Tatão Ribeiro? O próprio! Meu deus, o Mirim do Tatão Ribeiro… quem diria… É… assentou em São Paulo… Quem vê ele assim, todo enricado, nem imagina… Pois não é? Genuflexo, frente à imagem flechada de São Sebastião, rezaria contrito na Igreja-Matriz, pensamento enlevado à mãe que tão cedo se juntou aos Eleitos, Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, óleo cruzado na testa, oferecem carona na charrete, rever a companheirama do eito, Ê!, que também já fui isso!: anum capengando equilibrista na cerca de arame-farpado, jacu pula-pulando no leito do caminho ensaibrado, seriema limpando a paisagem, cururu enterrado no barro, Ê mundão!, e passa a divisa do Nenê Justi, e a dos Chiesa, e a do Orlando Spinelli, e a dos Bicio, e a do seu Beppo Finetto, e a dos Micheletto, Ê italianada!, É o Mirim, gente, o Mirim!, Alá ele!, Ê, Mirim, apeia aí, vem tomar café com a gente!, Ê, Mirim, apeia aí, vem comer com a gente! Ê Mirim, apeia aí, vamos armar uma briga de galo, de canário, uma pelada, solteiros contra casados, ranca-toco e quebra-canela, Ê Mirim, alembra da Gina? Pegou corpo, inteligente como o diabo, logo-logo casa, assim ó, de pretendente, mas a preferência é procê, né, que a gente conhece desde um cotoquinho assim, Mosquito Elétrico voando pelo Rodeiro, Vamos lá, Mirim, vamos fazer uma farra, Esse Mirim é pedra-noventa!, É o Cão!, É o que há!

Mas não voltou.

A juventude, murmurou, embaralhando as pedras do dominó, A juventude, suspirou, dividindo-as aos parceiros. Se adquiria um cartão-postal do Vale do Anhangabaú ou do Viaduto do Chá, o Correio escondia-se no itinerário. Se tencionava rabiscar uma carta, ausentava-se o papel, ou a caneta, ou o envelope, ou a notícia. Se inventava uma viagem, enroscava-se em requerências. Um mês, dinheiro, outro, coragem; um Natal, novos amigos, outro, família da namorada; um Ano Novo, Santos, outro, plantão; um Carnaval, Rio de Janeiro, outro, o batente; hora-extra em um feriado prolongado, cansaço em outros; umas férias vendidas, outras, necessidade de levantar o barraco, bater a laje, uma novidadezinha para casa… E os anos, fu!, evaporaram. Quando viu, o médico, percorrendo a ponta do dedo indicador no mapa cinzento do seu esqueleto impresso na chapa contra-luz, disse, grave, Escoliose, seu Valdomiro, Vamos ter que encostá-lo.

À janela do quarto número doze do Hotel Coqueiral a tarde se impacienta. O sol ainda se espicha lânguido no cocuruto calvo do morro, mas o lusco-fusco já exige faróis aos barulhos de caminhões e carros que entrecruzam-se no trevo da rodovia Ubá-Leopoldina. Valdomiro ressona, bolor no teto, o corpo castigado pela desconfortável viagem, onze horas entrevado numa poltrona de ônibus, mais cinqüenta minutos chacoalhando num parador, nuvens que conformam paisagens apenas adivinhadas. Desembarcou a bolsa na recepção (o rapazinho só surgiu de detrás de uma cortina ramada de chita limpando as mãos na bermuda após várias vezes tocar a campainha) e impaciente pôs o corpo dolorido a caminho. Tropeçou em galpões, carretas carregadas de móveis, Então prosperou a serrariazinha… Na Praça da Matriz, nos oitis despejados de seus irrequietos hóspedes empoleirava o silêncio agora. Carros estacionados no quadrilátero, o bar do Pivatto no chão. Na Rua da Roça, borrachas coloridas estendidas por sobre as calçadas águam a poeira dos paralelepípedos. Quede o cheiro de mijo e bosta de cavalo que empesteava as manhãs? Quede a venda? A loja do Turco? A máquina-de-arroz? Rostos indiferentes. O Mosquito Elétrico vruuum!, Sabe andar esse menino não?, vruuum! Subiu devagar, arfando, o aclive do cemitério caótico, sem arruamento, covas esparramadas pela rampa, túmulos em mármore e cruzes enfeitadas cravadas no chão duro, sepulturas, catatumbas, carneiros, sepulcros, menos a campa da mãe. Na descida, suando o terno escuro, esbarrou no coveiro, lata de cal e broxa retocando jazigos para o Finados próximo, que ofereceu auxílio na busca, sem sucesso. Acontece, disse, Acontece muito, tentou consolá-lo. As pernas varizentas arrastaram-no. Confuso, esquadrinhou a vargem, tinha certeza, a curva, o bambuzal, o poço, a paineira… nada, nada, nada, só mato… Alguém há de lembrar… Tatão Ribeiro… Juventina… Margarete… Irineu… Heim? Um negro alto, forte, bonito, heim? Tatão Ribeiro… Máquina-de-arroz… Heim?

Perguntassem – e perguntavam – ao seu Valdomiro, o momento mais arco-de-triunfo da sua vida, ele, a mão paralisada momentaneamente dentro do saquinho de pedras da víspora, mirando as paredes amarelas do Centro de Recreação do Idoso, responderia, despachado, o dia que tirei retrato para a formatura da quarta série, amplo sorriso rejuvenescendo a carapinha grisalha, única garantia de que existira um dia.

Fonte: Luiz Ruffato. Domingos sem Deus. Rio de Janeiro, Record, 2011