O Dia que Durou 21 Anos: Autópsia de uma conspiração

O filme de Camilo Tavares leva para casa o Prêmio Especial do Juri em Festival em New York – 29° Long Island Film Festival. Em O Dia que Durou 21 Anos, Tavares reúne imagens e documentos que comprovam o apoio do governo norte-americano ao regime militar no Brasil. 

Por Mário Magalhães, Revista Bravo!

Em dezembro de 1977, o menino Camilo Tavares carregou feliz o bolo com que festejaria 6 anos de vida, por mais insólito que fosse o lugar onde seu pai o esperava para comemorar, um cárcere político de Montevidéu. O exilado brasileiro Flávio Tavares não tinha escolha: estava preso na capital uruguaia desde que agentes da ditadura local o haviam sequestrado, cinco meses antes.

Pai e filho celebraram, mas sem vela nem bolo, retido na entrada da penitenciária por suspeita de esconder alguma arma ou mensagem. Camilo não se esqueceu do suco de laranja que Flávio lhe serviu e guardou para sempre a imagem do bolo proibido branco, de creme.

Poucas semanas atrás, o jornalista Flávio se surpreendeu ao ouvir, de uma terceira pessoa, que o tempo não apagara essa passagem cinzenta da lembrança do hoje cineasta Camilo, o antigo garoto magro, de covinha no queixo e cabelo encaracolado, muito parecido com o quarentão elegante em que se transformou. Os dois nunca conversaram sobre a festa de aniversário improvisada na cadeia, de onde o pai foi libertado logo depois.
O Dia que Durou 21 Anos, longa-metragem de estreia de Camilo Tavares, brotou de sua “vontade de saber por que na infância tinha presenciado episódios tão malucos, que não entendia”. Em outras palavras, “por que não voltava para casa”.

Nascido no México em 1971, o garoto não podia desembarcar na terra de seus pais devido aos tais “episódios tão malucos”, desencadeados com o golpe de Estado que derrubara o governo constitucional do presidente João Goulart, o Jango, no dia 1º de abril de 1964. Só veio para o Brasil aos 12 anos.

O documentário foi concebido para contar a história de Flávio Tavares, com base em livros que ele mesmo escreveu, como Memórias do Esquecimento. Suas crônicas literárias reconstituem a trajetória acidentada do gaúcho militante de esquerda que encarou a ditadura, tornou-se guerrilheiro urbano, foi preso quatro vezes e padeceu em sessões de tortura.

O acervo já configurava um tesouro histórico, mas o cineasta buscou mais informações nas bibliotecas que conservam a memória de dois presidentes norte-americanos – John Kennedy (1961-1963) e Lyndon Johnson (1963-1969) – e em emissoras de televisão dos Estados Unidos.

Em 1960, João Goulart havia sido eleito vice, mas ascendeu a presidente da República com a tresloucada renúncia de Jânio Quadros no ano seguinte. Para assumir, derrotou um complô da cúpula das Forças Armadas, que o fustigava como sócio do comunismo, a despeito de ele ser um abonado estancieiro. O preço de um acordo foi aceitar a redução de poderes, com a introdução de um arremedo de parlamentarismo. Em janeiro de 1963, uma votação consagradora em plebiscito restabeleceu o presidencialismo e referendou indiretamente Goulart.

O Dia que Durou 21 Anos apresenta o inventário das frentes golpistas – empresarial e civil, política e militar – que confluíram em 1964, desgostosas com o rumo à esquerda tomado por Jango e apoiadas com entusiasmo pelas classes médias. Todas articuladas com a Casa Branca, cujo operador mais notório era Lincoln Gordon, embaixador no Brasil de 1961 a 1966 e ex-professor de Harvard. Em um diálogo entre Gordon e o presidente Kennedy, em 1962, o diplomata recebe sinal verde para agir contra Goulart, como testemunha um áudio da reunião em Washington.

Os EUA financiaram candidatos de oposição em eleições e cruzadas de propaganda contra o Planalto. No filme, o historiador James Green, da Brown University, compara: “Imagine se o governo brasileiro tivesse financiado Barack Obama, tivesse gasto 30 milhões de dólares na campanha (contra os republicanos)… Imagine o escândalo”.

Thriller Político

Não é só Green que se pronuncia em inglês, o idioma mais falado no filme, com protagonistas norte-americanos. Numa conversa telefônica em 31 de março de 1964, o presidente Lyndon Johnson e o subsecretário de Estado, George Ball, combinam o envio imediato de uma força naval para respaldar os golpistas no Brasil – zarpava a Operação Brother Sam.

Em outra gravação, Johnson tratou com ­McGeorge Bundy, então seu conselheiro de Segurança Nacional, do reconhecimento diplomático do novo governo. Bundy disse que o embaixador Gordon desejava que fosse “muito caloroso”, enquanto os conselheiros em Washington preferiam “um pouco cauteloso”, pois os militares brasileiros estavam prendendo cidadãos. “Acho que tem gente que precisa ir em cana aqui e lá também”, retrucou o presidente, decidindo pelo tom efusivo.

Sequências assim, com o registro a quente dos acontecimentos, mantêm o clima de tensão e thriller político do documentário. Bem como a manifestação assertiva de três veteranos oficiais militares brasileiros, que foram entrevistados para o filme. Partidários do golpe, defendem a “Revolução” feita em nome da democracia.

Muito diferente de uma versão retalhada em três episódios, exibida na TV em 2011, o longa chega aos cinemas na abertura do ano que se completará com o aniversário de meio século do golpe. E no momento em que a Comissão Nacional da Verdade esquadrinha os tempos da ditadura, inclusive a colaboração norte-americana em violações dos direitos humanos no Brasil.

Embora Camilo Tavares tenha se concentrado na gênese do golpe, seu pai pontua a história. Ela começa na crise provocada pela renúncia de Jânio, em agosto de 1961, que Flávio cobriu em Porto Alegre como editor de política do jornal janguista Última Hora. E termina em 1969, com o sequestro do então embaixador dos Estados Unidos, Charles Burke Elbrick, por grupos armados. Em troca de sua libertação, 15 oposicionistas deixaram a prisão, banidos do Brasil. Um deles foi Flávio, que, 27 meses depois de se radicar na Cidade do México, foi pai de Camilo, cujo nome reverencia o padre católico e guerrilheiro colombiano Camilo Torres, morto em 1966.

Flávio Tavares, 78 anos, conduz serenamente as entrevistas do filme, mesmo as com velhos antagonistas ideológicos. A um deles, Robert Bentley, assessor de Lincoln Gordon em 1964, indaga sobre crimes como tortura contra presos políticos. Sem graça, o norte-americano responde: “Isso é difícil de justificar oficialmente. Mas lamento, lamento, de qualquer maneira”.

Veja trailer oficial do filme:



Ficha técnica:
"O dia que durou 21 anos"
Brasil, 2012
Gênero:Documentário
Duração:77 minutos
Direção e Roteiro:Camilo TavaresEntrevistas:Flavio Tavares
Produção:Karla Ladeia
Realização e Distribuição:Pequi Filmes

*Mário Magalhães é jornalista, autor da biografia Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo.