A arte de xingar

Você diz que me dá casa e comida / boa vida e dinheiro pra gastar. Que que há, minha gente, o que que há / tanta bondade que me faz desconfiar.”

Essa música certamente inspirou uma moça que conheci, lá pelos anos 1970, para xingar uma conhecida dela que havia transado com seu namorado. O xingamento, depois da moça dizer que suspeitava que a outra havia passado alguma doença venérea para o rapaz, foi o seguinte:

Por Mouzar Benedito

Mafalda

― Você não passa de uma laranja madura na beira da estrada!

Achei, sem dúvida, o xingamento mais estranho que já tinha ouvido.

A arte do xingamento parece que vai perdendo a criatividade e a variedade. E isso começou há muito. Na própria década de 1970, nas chanchadas italianas, o xingamento quase único usado contra mulheres era piranha (pelo menos a tradução), palavra que não usávamos aqui antes. Usava-se, às vezes, galinha. Mas muita gente começou a xingar mulheres de piranha.

Depois, os filmes dos Estados Unidos mudaram o xingamento com o mesmo sentido. Passou a ser vadia, palavra hoje utilizada por muita gente. Ninguém mais fala em biscate, dissoluta, libertina, pistoleira ou decaída, entre muitas outras palavras possíveis.

Uma coisa que contribuiu para acabar com a variedade de xingamentos, acredito, é a tendência para repetir o que se ouve na televisão e no cinema. Qualquer coisa é repetida por todo mundo, como se essa repetição fosse algo muito criativo. Assim, até certos xingamentos viram moda e praticamente se esquece os xingamentos anteriores.

Há quanto tempo não ouço ninguém xingar alguém de excomungado? E fedorento? E desavergonhado? E desgramado ou desgranhento? Será possível hoje em dia ouvir alguém dizer:

“Você não passa de um facínora”?

Ah, tem também a coisa do politicamente correto. Palavras ofensivas contra certas minorias (que às vezes nem são minorias) não são mais admitidas. Provocam fúria, não só dos xingados, mas de quase toda a torcida. Nem vou lembrar nenhum xingamento desses aqui!

Mas vejamos uns xingamentos esquecidos… Quem xingaria alguém de lazarento, hoje?

Tem alguns que se alguém ouvir talvez nem saiba o significado real, talvez apenas imagine o que seja, porque são coisas que “caíram de moda”. Um exemplo? Bem, não é moda mais mulheres ficarem na janela olhando quem passa e fofocando com outra sobre os passantes. Mulher que fazia isso era chamada de janeleira. “Sua janeleira!”

E chamar o sujeito de entojado, ou então dizer que ele é um entojo? Mesmo um sinônimo parecido, enjoado, tornou-se raro. Sarnento, desmiolado, sandeu e xarope também são raridades.

Agora lembremos uns xingamentos “de esquerda”, muito usados em outros tempos. Tem alguns que as pessoas pensam que o significado é o contrário do real. Ouvi várias pessoas (não tão jovens) dizerem que “o fulano é um reacionário”, achando que faziam um elogio.

Brinco de vez em quando de chamar alguém de revisionista e poucos sabem que essa palavra não tem nada a ver com o trabalho do revisor. “Alienado” também está fora de uso, e com muita razão: quase todo mundo é alienado hoje em dia, então ser alienado é estar integrado em seu tempo. E refratário? Esta palavra, como xingamento, é até bom eu “traduzir” aqui: é o que rejeita radicalmente novas ideias, novos comportamentos.

Renegado ainda é possível ouvir raramente. Muito raramente. Mas uma coisa com o mesmo sentido pode ser interpretada de forma bem diferente: “Você é um desbundado”. Nada disso que vocês estão pensando! Desbundar era abandonar a militância de esquerda e se aproximar da direita, ou pelo menos se alienar. Chamar o sujeito de trânsfuga, com o mesmo sentido, é talvez mais raro ainda.

Mas tem uma usada pelos caras de direita contra nós, que caiu de moda também: subversivo. Mas também quase não existem mais subversivos. Os militares diziam que “esses subversivos só querem espalhar a cizânia”.

Saindo dos xingamentos políticos, lembro dos usados para dizer que o cara é um sujo: cascudo e piolhento. Gente ruim era uma bisca. Ladrão, entre outras coisas, era larápio ou amigo do alheio. Epa! Voltei pra política sem querer. O que tem de larápio… Bom, quando ia se listar uma turma merecedora de xingamentos como esses, dizia-se: “Fulano, beltrano, cicrano et caterva”. Aliás, a turma toda era uma súcia.

Bom, tem uma palavra muito usada hoje em dia, por qualquer motivo, que não se usava antes: é dizer que o beltrano é (ou está) estressado.

Acho que já tem gente ficando estressada com esta minha crônica, paro de falar de xingamentos antigos, mas faço uma pequena lista com alguns deles aqui: bunda suja, mequetrefe, borra-botas, lheguelhé, biltre, patife, raposino, calhorda, sorongo, safardana, porra-louca, pulha, cafajeste, ordinário, pústula, desqualificado, pérfido, degenerado, pústula, cachorro sem dono (epa!, antes chamar alguém de cachorro ou cadela era xingamento ofensivo, hoje gostam mais dos cachorros do que de gente… então se chamar alguém de cachorro sem dono, é capaz que fiquem com pena da pessoa), finório, desinfeliz, descarado, lambisgóia, descabeçado, porqueira, cara lambida, velhaco, intrujão, capadócio, babão, babaquara, parvo, papa-moscas, mentecapto, obtuso, cabeça de vento (o que tem de gente com essa “qualidade”!), cabeça de bagre, papalvo, sujeito de meia tigela, estropício e transviado.

Paremos por aqui, que sei que deve ter leitor dizendo que “esse boca suja com ideia de jerico deve ser um bebum, amigo do copo, funil, pau-d’água, mata-borrão, biriteiro, ébrio, xumbregado, pilecado…”.