Pedro Serrano: Prostituição e direito à saúde

O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, adotou a decisão de retirar campanha em favor da melhoria da auto-estima das profissionais do sexo com vistas à prevenção da Aids e doenças sexualmente transmissíveis. Um dos cartazes da campanha trazia a frase “Eu sou feliz sendo prostituta”. Também foi exonerado pelo ministro o diretor do departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.

Por Pedro Serrano*, da Carta Capital

A retirada da campanha deu-se, aparentemente, por pressão da chamada “bancada evangélica“, que usou da Comissão de Direitos Humanos, presidida pelo deputado Marcos Feliciano (PSC-SP), para criticar a iniciativa.

Esse é o terceiro recuo do ministro em situações semelhantes. Conforme matérias veiculadas pela mídia, diversos profissionais e especialistas em saúde pública discordaram veementemente do recuo do ministro. Tais especialistas apontam diversas pesquisas científicas que demonstram que não é possível combater de forma plenamente eficaz o contágio da Aids sem a valorização da auto-estima das parcelas mais vulneráveis da população.

Não é preciso gastar muito esforço de argumento para afirmar que o Brasil é um pais laico, aliás como qualquer outra verdadeira democracia representativa.

Por esta razão questões de saúde pública devem ser tratadas por critérios exclusivamente técnico-científicos. Aspectos de moralidade religiosa não devem interferir em decisões administrativas neste tema.

Queiram os evangélicos ou não, no Brasil a atividade de prostituição é uma atividade lícita, não sendo capitulada como crime em nossa legislação penal. Embora não regulamentada como profissão, é lícita como qualquer outra das inúmeras atividades de trabalho lícitas não regulamentadas.

Em verdade, a regulamentação de uma profissão ou trabalho serve à limitação de seu exercício e não à ampliação da possibilidade de seu exercício, como pode imaginar o leigo. Tanto a prostituta que oferece e realiza serviços sexuais quanto o cliente que paga pelos mesmos estão, ambos, realizando uma atividade inerente a sua esfera pessoal de liberdade garantida pelo direito e por nossas leis.

Saúde é um direito do cidadão e dever do Estado realizá-lo. É um direito das prostitutas contarem com campanhas de prevenção da Aids dirigidas especialmente a elas, pois em razão do exercício de suas atividades lícitas estão mais sujeitas que a média da população à exposição ao vírus.

Mais do que um direito específico das prostitutas como grupo minoritário vulnerável, medidas de contenção da transmissão da Aids neste meio profissional beneficiam toda população e, portanto, é um direito de toda sociedade.

Aparte a hipocrisia moral e social que o assunto traz à tona, a realidade é que muitos homens, inclusive pais de família e até evangélicos, usam dos serviços de prostitutas e como tal funcionam como vetores de transmissão do vírus desse grupo mais vulnerável para o todo social, inclusive suas esposas, namoradas, parceiras e parceiros.

Campanhas de aumento da auto-estima das profissionais do sexo com vistas à mitigação da transmissão do vírus da Aids e demais DSTs em seu meio são, além de direito desta minoria social, um direito difuso de toda sociedade.

Ao ceder aos reclamos obscurantistas de setores religiosos, nosso ministro da Saúde errou. E errou de forma incompatível com nossa Constituição. Realizar as referidas campanhas de estimulo à auto-estima é seu dever e não mera opção sua.

Por outro lado, é muito preocupante ver o parlamento como voz do obscurantismo em termos dos direitos fundamentais e humanos. Embora não majoritária a, bancada evangélica consegue ser cada vez mais dominante nas pressões e ações parlamentares face à inação um tanto covarde da maioria mais esclarecida das casas legislativas.

Tal circunstância serve para mostrar que na tensão entre parlamento e STF não há mocinho ou bandido. Nos temas que tangenciam os costumes afetivos, sexuais e familiares, se não fossem as medidas contundentes da corte no exercício da interpretação constitucional, nossos direitos fundamentais nesses temas seriam letra morta.

Em temas importantes da vida cotidiana estaríamos sujeitos a interpretações medievais da Bíblia e não a valores humanos universais e laicos, traduzidos em direitos, como posto em nossa Constituição.

*Advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP, é mestre e doutor em Direito do Estado.