Carlos Felipe Moisés: Caymmi e Villa-Lobos

Em 1940, recém-chegado ao Rio, Dorival Caymmi trazia já no currículo um grande sucesso, "O que É que a Baiana Tem", mas a intérprete, Carmen Miranda, tinha levado todas as glórias, pouca gente sabia quem era o autor. Na bagagem, uma quantidade de futuros sucessos, como "João Valentão", "É Doce Morrer no Mar", "Saudade de Itapoã" e tantas outras canções. Mas nessa altura ele ainda era um jovem desconhecido.

Por Carlos Felipe Moisés*, do Valor Econômico

Ele então decidiu "estudar música" e foi pedir a Villa-Lobos que lhe indicasse uma escola, um conservatório. O maestro o dissuadiu, alegando que isso comprometeria o que ele tinha de melhor: o seu jeito primitivo de ser, os instintos, o dom natural. Caymmi acatou o conselho e desistiu de estudar música.

Hoje, 70 anos depois, a história se repetiria? Há controvérsias. O grande maestro e o jovem talento de hoje provavelmente apostariam na certeza de que algum estudo teórico, um tanto de crítica e autocrítica e uma dose de conhecimento técnico não fazem mal a ninguém. Mas isso não dá por resolvida a controvérsia.

A criação artística brota dos instintos e da inspiração? Muitos dirão que sim, e argumentarão: veja a grandeza da obra que Caymmi nos legou, um dos monumentos da música popular brasileira, exatamente porque seguiu o conselho de Villa-Lobos… Já outros dirão: ele é um dos grandes, claro, mas imagine a altura a que chegaria se tivesse acrescentado, ao talento que Deus lhe deu, algum estudo, algum aperfeiçoamento, uma elaboração mais refinada…

A concepção de criação artística por trás do conselho de Villa-Lobos remonta à Antiguidade e não esconde seu namoro com o "sobrenatural". Para Platão, arte é fruto do "entusiasmo" – que significa, literalmente, "estar com um deus dentro de si". Ao criar a sua obra, o músico, o pintor ou o poeta entra numa espécie de transe e não tem (assim reza a tradição) o menor controle sobre o que faz. Os sons, as pausas, as palavras, o ritmo, as cores e as formas vão surgindo, como se se tratasse de algo totalmente involuntário.

Já seus adversários defendem uma concepção "natural": a criação artística provém não do capricho dos deuses (das musas, da natureza, do destino), mas da deliberação e da vontade humana, que escolhe criar a partir do estudo, do conhecimento dos materiais à sua disposição, do domínio técnico, da experimentação, do exercício continuado. Por isso é uma concepção "moderna", não necessariamente no sentido de que tenha superado a "antiga", mas de que é mais recente – posterior ao Iluminismo e ao surto de desenvolvimento científico e tecnológico que desde então rege a nossa cultura.

A primeira concepção é sobrenaturalista, "mágica", e concebe o artista como um "eleito", receptáculo passivo da vontade divina. A segunda é humanista, atribui tudo à vontade do indivíduo humano, falível, mas que decide ser "artista", movido pelo desejo de superar suas limitações, contando com seus próprios recursos.

O jovem músico tem hoje, ao seu dispor, uma variedade de escolas e conservatórios, e até faculdades, nos quais aprenderá a lidar com uma partitura, assimilará os rudimentos de composição, arranjo, orquestração, regência; conhecerá a história do instrumento de sua predileção e adquirirá boas noções de canto, escala, solfejo, harmonia e por aí vai. Se tiver pelo menos um pouco do talento que Caymmi já demonstrava em 1940, "estudar música" vai sem dúvida ajudar a desenvolvê-lo. Se não tiver, não haverá escola que transforme em arte o seu honesto desejo de ser artista. Mas ainda assim o resultado será proveitoso: a arte musical ganhará mais um apreciador… entusiasmado, e consciente das razões do seu entusiasmo. (Platão não teria muito o que reclamar.)

O fato é que estamos lidando com um estereótipo, esse do indivíduo que "nasce" artista. Apesar de rolar há milênios, a ideia é mais ilusão do que realidade. É só prestar atenção no argumento de Villa-Lobos: jeito primitivo de ser, instintos, dom natural? Onde é que ele viu isso em "O que É que a Baiana Tem"?

A melodia e a letra são de fato singelas, baseiam-se no princípio da repetição e no som monocórdio da rima em "em" ("tem", "bem", "ninguém"), que, associada à duplicação de algumas frases, acentua o ritmo obsessivo, gerando a (falsa) expectativa de que tudo se mantenha na mesma toada, até o final. Mas é só compasso de espera, para que de repente a expectativa se quebre e a rima desapareça, dando lugar a timbres variados: "Quando você se requebrar / caia por cima de mim / caia por cima de mim"… Que impulso "primitivo" ou que "instintos" seriam capazes de gerar tão sábia elaboração formal?

Ao compor o seu samba, Caymmi dominava um largo repertório de expressão musical, que ele fora adquirindo sem esforço, desde a infância. "O que É que a Baiana Tem" é uma espécie de filtro, no qual se reúne uma variedade de timbres e fraseados melódicos, expedientes consagrados, súmula do que ele até então ouvira na vida. A composição é evidente fruto de estudo e aprendizado (embora Caymmi não tivesse aprendido nada disso na "escola"), e não de inspiração súbita, como Villa-Lobos – e com ele muita gente, desde os tempos de Platão – parece acreditar.

O caso se complicaria (ou teria uma explicação mais convincente) se o que estivesse em pauta fosse não o jovem músico diante do grande maestro, mas o candidato a poeta, como Franz Xaver Kappus, digamos, diante de Rainer Maria Rilke ("Cartas a um Jovem Poeta") – ou qualquer outro, diante de Bandeira, Drummond, Vinicius… O aprendiz de poeta, ontem e hoje, não conta com nada que se assemelhe a um Conservatório Musical, exceto a informalidade das oficinas de criação literária. Seria até divertido imaginar um Conservatório de Poesia, mas isso não existe… A razão é simples: o poeta aprende lendo e imitando outros poetas. Se o músico tem muito a aprender numa escola ou num conservatório, o poeta tem não só o direito, mas a obrigação de ser um autodidata… que não confia inteiramente no talento e na inspiração que Deus lhe deu.

Na verdade, Villa-Lobos perdeu a oportunidade de propor a Dorival Caymmi a perspectiva do homem ideal, aquele que o mundo de hoje valoriza acima de tudo: o homem que, conciliando os contrários, é ao mesmo tempo instintivo e… racional, capaz de improvisar e… planejar. O homem eclético, em suma, apto a reunir em si todos os atributos que o habilitem a desempenhar uma gama variada de funções. Não é o tipo de "talento" que toda empresa gostaria de ter em seus quadros?

Deve ser por isso que uma querida amiga (chefe de uma equipe de "headhunters") foi logo dizendo, quando conversávamos a respeito: "Ah, intuitivo e racional? Criativo e disciplinado? Eclético? Tá, quando eu encontrar um assim, levo pra casa…". E seguimos ouvindo Caymmi: "É quando / o sol vai quebrando / lá pro fim do mundo / pra noite chegar. É quando / se ouve mais forte / o ronco das ondas / na beira do mar…".

*Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula"), ensaísta ("Tradição & Ruptura") e tradutor ("O Poder do Mito").