Estatuto do Nascituro é um retrocesso às conquistas femininas

Aprovado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados no último dia 6, o Projeto de Lei 478/2007, conhecido por Estatuto do Nascituro, representa um retrocesso às conquistas alcançadas pelas mulheres nos últimos anos. Abaixo, a advogada em Direito Médico e professora de Bioética da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Camila Vasconcelos, fala sobre o polêmico projeto.

“Estatuto do Retrocesso

Diversas têm sido as manifestações relativas ao absurdo Projeto de Lei 478/2007, batizado como “Estatuto do Nascituro”. Dentre elas há quem se mantenha atento às intencionalidades projetadas, e quem apenas reproduza e compartilhe discursos sem a realização anterior de leituras críticas. Seria esta, penso, uma permissão de utilização de nossas mentes como massa de manobra, sobretudo quando enaltecida por fervor não laico, paixão ou apelação a imagens sensibilizantes.

O fato é que, entre batismos, concepções permeadas por equívocos argumentativos e inobservâncias à violenta realidade deste país, calorosas manifestações ocorrem a este texto, que traz consigo tamanha potencialidade de vulnerabilizar os direitos humanos absorvidos pela atual Constituição da República Federativa do Brasil.

Estejamos atentos. Em seu art. 5º a Constituição brasileira garante, dentre outros, os direitos à liberdade, à segurança, destacando-se ainda que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”, e que são invioláveis a intimidade, a vida privada e a honra. Ainda assim, garante que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença”, respeitando-se, deste modo, a laicidade do Estado.

Atualmente no Brasil a legislação penalista e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal asseguram três condições para realização de aborto lícito no país, em que pese a legítima continuidade da luta pela legalização desta prática que, na ilegalidade, resulta em uma grave questão de saúde pública: são as hipóteses de abordo para salvar a vida da gestante, de aborto em circunstância de gravidez proveniente de estupro e de aborto em caso de gestação de feto anencéfalo que, sabe a ciência, é incompatível com a vida extrauterina.

Então perguntamos ao texto projetado: como preceituar, em seu art. 4º, “absoluta prioridade” ao nascituro no que se refere à expectativa do direito à vida? Pretendeu-se relativizar ou colocar em segundo plano os direitos da mulher? A que se refere o seu art. 10 ao gerar o dever de manutenção de meios terapêuticos e profiláticos a nascituros sem expectativa de sobrevida extrauterina? Pretendeu-se obstar a conquista de aborto a fetos anencéfalos? Também assim, como deveremos compreender o seu art. 13, quando afirma que mesmo ao nascituro concebido por ato de violência sexual é proibida qualquer restrição de direitos, dentre eles o direito à vida? Pretendeu-se ilegalizar o aborto legal?

Trocando em miúdos, as mensagens dispostas nos corpos destes artigos, subliminares ou extremamente claras aos atentos, são: Cara mulher: constatamos o estupro sofrido por você, entretanto, confirmamos que há prioridade do nascituro na resolutividade desta questão. Deste modo, suspendemos o seu anterior direito ao aborto, e você será submetida à manutenção da gestação, com uma “altruísta” entrega de acompanhamento psicológico para que possa suportar a tortura da gestação advinda de estupro, e de pensão alimentícia paga pelo genitor-estuprador, para que possa alimentar este seu filho-nascituro. Mas não se preocupe: caso seja ele desconhecido, ou não tiver condição de arcar com os custos, o Estado pagará esta pensão. E, se após todo este “apoio”, você não deseje “assumir” esta criança, ela será cuidadosamente levada à adoção.

Ironias à parte, neste contexto a pergunta afirmativa que se faz é: estaríamos nós, em verdade, diante de um discurso pseudolegislativo e imerso em entrelinhas não laicas e antifeministas? A que discurso estaríamos nós verticalmente submetidos?

O Brasil, em uma época de tamanha evolução e marcha por conquistas sociais enfrenta agora, penso, uma tentativa de contraprodução legislativo-social. Trata-se de um fervor de massas indignadas com as atuais afirmações brasileiras das conquistas alcançadas em meados do século XX através da Declaração dos Direito Humanos: os direitos à liberdade e à igualdade. As perspectivas de gênero, neste contexto, sofrem uma forte tentativa de esvaziamento, com o enaltecimento de discursos restritivos, o que impacta na saúde pública e na atenção às vulnerabilidades sociais.

A Bioética, reflexão em ética aplicada também a estes discursos, responde com sua teoria a estas questões. É que transmite, através de sua Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos a necessária observância à Autonomia, à Vulnerabilidade Humana e sua Integridade, à Privacidade, à Igualdade, à Não-discriminação e à Não-estigmatização. São, todos estes, e dentre outros, princípios internacionalmente conquistados, incluindo-se ainda a Responsabilidade Social e a promoção da Saúde.

Desta teoria, é preciso partir-se para a prática com ações afirmativas. São responsáveis, neste contexto, aqueles que se debruçam sobre este estudo, seja no campo acadêmico, administrativo ou a partir de movimentos sociais.

Sociedade: esteja atenta. Informe-se, critique, contraste o que incomoda aos nossos corpos, sobretudo os grandes poderes e as suas microfísicas. A proposta é a reafirmação de conquistas e a manutenção de lutas. Dentre elas, a luta pela não permissão ao retrocesso.

Camila Vasconcelos | Advogada em Direito Médico e professora de Bioética da Faculdade de Medicina da UFBA”

De Salvador,
Ana Emília Ribeiro