Amin: China rejeita globalização financeira e forja novo modelo

O terceiro resumo publicado pelo Portal Vermelho (em uma série feita a partir de algumas intervenções de representantes de partidos comunistas no seminário “A China no Século 21: Presente e Futuro") é o do economista marxista egípcio Samir Amin. Ele fala da China emergente, resistente à incorporação à globalização financeira atual e, por isso, persistente no plano nacional soberano rumo ao socialismo. Leia a seguir o resumo da sua intervenção.

Nos debates sobre o presente e o futuro da China, uma potência “emergente”, alguns argumentam que a China escolheu permanentemente “a estrada capitalista” e até tenciona acelerar sua integração em uma globalização capitalista contemporânea.

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Eles se sentem satisfeitos com isso e esperam apenas que este “retorno à normalidade” (o capitalismo sendo “o fim da história”) seja acompanhado pelo desenvolvimento em direção à democracia de estilo ocidental (partidos múltiplos, eleições, direitos humanos).

Os que estão no poder, em Pequim, descrevem o caminho escolhido como um “socialismo de estilo chinês”, sem serem mais precisos. Entretanto, podemos discernir as suas características ao ler atentamente os textos oficiais, particularmente o Plano Quinquenal, que é preciso e tomado seriamente.

A questão agrária

Mao descreveu a natureza da revolução levada a cabo na China pelo Partido Comunista como uma revolução anti-imperialista e anti-feudal, em prol do socialismo. Mao nunca levou em consideração que, depois de lidar com o imperialismo e o feudalismo, o povo chinês havia construído uma sociedade socialista. Ele sempre caracterizou essa construção como a primeira fase de um longo caminho em direção ao socialismo.

É preciso enfatizar a natureza bastante específica da resposta dada à questão agrária pela Revolução Chinesa. A terra agricultável distribuída não foi privatizada; continuou sendo propriedade da nação representada pelas comunas das vilas, e apenas o seu usufruto era dado às famílias rurais. Este não foi o caso da Rússia, em que Lênin, desafiado pelo fato da insurreição camponesa de 1917, reconheceu a propriedade dos beneficiários da distribuição de terras.

Por que a implementação do princípio de que a terra agricultável não era uma commodity possível na China (e no Vietnã)? É constantemente repetido que os camponeses do mundo almejam a propriedade e apenas isso. Se esse tivesse sido o caso na China, a decisão de nacionalizar a terra teria levado a uma guerra camponesa sem fim, como foi o caso quando Stalin começou a coletivização forçada na União Soviética.

A atitude dos camponeses da China e do Vietnã (e de nenhum outro lugar) não pode ser explicada por uma suposta “tradição” em que eles não estariam cientes do conceito de propriedade. É na verdade o produto de uma linha política inteligente e excepcional implementada pelos Partidos Comunistas de ambos os países.

Mao tirou lições da história e desenvolveu uma linha política de ação completamente diferente. A começar pelo sul da China, na década de 1930, durante a longa guerra civil pela libertação, Mao baseou a crescente presença do partido comunista em uma aliança sólida com os camponeses sem-terra e empobrecidos (a maioria), manteve relações amigáveis com os camponeses médios e isolou os ricos em todas as fases da guerra, sem necessariamente antagonizá-los. O sucesso dessa política preparou a grande maioria de habitantes rurais para considerar e aceitar uma solução aos seus problemas que não requeresse a propriedade privada em porções de terra adquiridas através da distribuição.

Por isso, Mao conseguiu o que o Partido Bolchevique não fez: estabelecer uma aliança sólida com a grande maioria rural. Na Rússia, os eventos do verão de 1917 eliminaram oportunidades avançadas de uma aliança com os camponeses empobrecidos e médios contra os ricos (os kulaks, ou “sovinas”, na expressão em português), porque os primeiros estavam ansiosos por defender as suas novas propriedades privadas e, consequentemente, preferiram seguir os kulaks ao invés de acompanhar os bolcheviques.

Presente e futuro da pequena produção

A pequena produção (camponesa e artesanal) dominou a produção em todas as sociedades passadas, e manteve um lugar importante no capitalismo moderno, agora ligada à pequena propriedade (em agricultura, serviços e até a certos seguimentos da indústria.. Certamente, na tríade dominante do mundo contemporâneo (os Estados Unidos, a Europa e o Japão) estão retrocedendo. Um exemplo disso é o desaparecimento de pequenos negócios e a sua substituição por grandes operações comerciais, mas isso não significa que a mudança é um “progresso”, mesmo em termos de eficiência, ou ainda se as dimensões social, cultural e civilizacional são levadas em consideração.

Na China atual, em todo caso, a pequena produção (que não é necessariamente ligada com a pequena propriedade) retém um lugar importante na produção nacional, não apenas na agricultura, mas também em grandes seguimentos da vida urbana.

A China tem experimentado formas bastante diversas e até contrastantes do uso da terra como bem comum. Precisamos discutir, por um lado, eficiência (volume de produção por hectare, por trabalhador, por ano) e, por outro lado, a dinâmica das transformações postas em marcha. Essas formas podem fortalecer tendências pró-desenvolvimento capitalista, que acabariam por ressaltar a questão do estatuto de não-commodity da terra, ou pode ser parte do desenvolvimento em direção ao socialismo.

Ainda, os princípios e políticas implementadas (terra de propriedade comum, apoio à pequena produção sem pequena propriedade) possibilitaram a migração relativamente controlada das zonas rurais para as urbanas. Em comparação com o percurso capitalista do Brasil, por exemplo, a propriedade privada nas terras agricultáveis esvaziou a zona rural brasileira (hoje contando com apenas 11% da população total do país). Mas ao menos 50% dos habitantes urbanos vivem em favelas ou periferias e sobrevivem apenas graças à economia informal (inclusive o crime organizado).

Não há nada similar a isso na China, onde a população urbana, como um todo, está adequadamente empregada e com residências, até mesmo em comparação com muitos “países desenvolvidos”, sem mencionar aqueles com PIB per capita no nível do chinês.

O “capitalismo de Estado” chinês

A primeira classificação que vem à mente para descrever a realidade chinesa é o capitalismo de Estado. Entretanto, o rótulo continua vago e superficial enquanto um conteúdo específico não é analisado.

É, realmente, capitalismo, no sentido em que a relação pela qual os trabalhadores estão sujeitos pelas autoridades que organizam a produção é similar à que caracteriza o capitalismo: trabalho submisso e alienado, trabalho de extração da mais-valia.

Entretanto, o estabelecimento de um regime de capitalismo de Estado é inevitável, e continuará sendo assim em todos os lugares. Os próprios países capitalistas desenvolvidos não conseguirão entrar em um caminho socialista (o que não está na agenda atual) sem passar por este primeiro estágio. Esta é a fase preliminar no comprometimento potencial de qualquer sociedade na sua libertação do capitalismo histórico na longa rota para o socialismo/comunismo.

O capitalismo de Estado chinês foi construído para alcançar três objetivos: 1) Construir um sistema industrial moderno integrado e soberano; 2) Gerir a relação desse sistema com a pequena produção rural; e 3) Controlar a integração da China ao sistema mundial, dominado pelos monopólios generalizados da tríade capitalista (EUA, Europa e Japão).

Perseguir esses três objetivos prioritários é inevitável. Como um resultado, isso permite um avanço possível na longa rota ao socialismo, mas ao mesmo tempo fortalece tendências a abandonar essa possibilidade a favor do desenvolvimento capitalista puro e simples.

Entretanto, o que o capitalismo de Estado chinês alcançou entre 1950 e 2012 é simplesmente surpreendente. Ele foi bem sucedido, na verdade, na construção de um sistema produtivo moderno e integrado à escala do seu gigantesco país, o que não pode ser comparado àquele dos Estados Unidos.

Ele conseguiu deixar para trás a grande dependência tecnológica das suas origens (importação de modelos soviéticos, e depois ocidentais) através do desenvolvimento das suas próprias capacidades para produzir invenções tecnológicas. Entretanto, ele (ainda?) não começou a reorganização do trabalho desde a perspectiva da socialização da gestão econômica. O Plano (e não a “abertura”) tem continuado como o meio central para a implementação dessa construção sistemática.

A integração da China na globalização capitalista

Não podemos seguir a análise do capitalismo de Estado chinês (chamado de “socialismo de mercado” pelo governo) sem levar em consideração a sua integração na globalização. A China entrou na globalização na década de 1990 através do desenvolvimento acelerado das exportações de manufaturados possível por seu sistema produtivo, dando prioridade às exportações cujas taxas de crescimento depois passaram os do crescimento do PIB. O triunfo do neoliberalismo favoreceu o sucesso dessa escolha por 15 anos (de 1990 a 2005).

Manter essa escolha é questionável não só por causa dos seus efeitos políticos e sociais, mas também porque é ameaçada pela implosão do capitalismo neoliberal globalizado, que começou em 2007. O governo chinês parece estar ciente disso e começou, de forma vigorosa, a tentar corrigir ao dar maior importância ao mercado interno, e desenvolver o oeste da China.

A integração da China à globalização manteve-se parcial e controlada. A China ficou fora da globalização financeira; seu sistema bancário é completamente nacional e focado no mercado interno de crédito. A gestão da moeda nacional, o yuan, ainda é uma questão para a decisão soberana da China.

No país, o investimento estrangeiro pode certamente beneficiar-se dos baixos salários e obter bons lucros, na condição de que seus planos se adequem nas permissões chinesas e na transferência de tecnologia.

China, a potência emergente

A China não seguiu um caminho específico apenas desde 1980, mas desde 1950, embora esse caminho tenha passado por fases diferentes em muitos aspectos. O país desenvolveu um projeto coerente e soberano adequado às suas próprias necessidades. Isso com certeza não é capitalismo, cuja lógica requer que a terra agricultável seja tratada como uma commodity.

O projeto continua soberano enquanto a China continuar fora da globalização financeira contemporânea.

A emergência da China é completamente resultado deste projeto soberano. Neste sentido, é o único país emergente autêntico. Nenhum dos muitos outros países aos quais o Banco Mundial deu um certificado de “emergente” o é realmente porque nenhum deles tem seguido persistentemente um projeto soberano nacional.

Todos assinam em baixo dos princípios fundamentais do capitalismo puro e simples, até mesmo em seus setores potenciais do capitalismo de Estado. Todos aceitaram a submissão à globalização contemporânea em todas as suas dimensões, inclusive financeira. Por isso, continuam vulneráveis.

Grande sucesso, novos desafios

A China não acabou de chegar em uma bifurcação, tem estado lá cotidianamente desde 1950. As forças sociais e políticas da direita e da esquerda, ativas na sociedade e no partido, têm se confrontado constantemente.

A pequena produção, particularmente camponesa, não é motivada pelas ideias da direita, como pensou Lênin (corretamente, sob as condições russas). A situação da China contrasta aqui com aquela da antiga União Soviética. O campesinato chinês, como um todo, não são reacionários porque não estão defendendo o princípio da propriedade privada, em contraste com o campesinato soviético, que os comunistas nunca conseguiram distanciar do apoio aos kulaks na defesa da propriedade privada.

Ao contrário, o campesinato chinês de pequena produção (sem serem donos de pequenas propriedades) é hoje uma classe que não oferece soluções de direita, mas é parte de um campo de forças que agitam pela adoção das mais corajosas políticas sociais e ecológicas. O poderoso movimento da “sociedade rural renovadora” é exemplo disso. O campesinato chinês em geral está no campo esquerdista, com a classe trabalhadora. A esquerda tem seus intelectuais orgânicos e exerce alguma influência no Estado e nos partidos.

Para entender os desafios que a China enfrenta hoje, é essencial entender que o conflito entre o projeto soberano da China, tal como é, e o imperialismo norte-americano e seus aliados subalternos da Europa e do Japão, aumentarão a sua intensidade na proporção em que a China continue a ser bem-sucedida. Há várias áreas de conflito: o comando chinês em tecnologias modernas, acesso aos recursos do planeta, o fortalecimento das capacidades militares da China e a busca pelo objetivo de reconstruir a política internacional na base dos direitos soberanos dos povos para escolher seus próprios sistemas econômicos e políticos. Cada um desses objetivos entra em conflito direto com os objetivos da tríade imperialista.

A linguagem usada pelas autoridades chinesas sobre as questões internacionais, extremamente contida (o que é compreensível), torna difícil saber até onde os líderes do país estão cientes dos desafios. Mais seriamente, essa escolha de palavras reforça ilusões de ingenuidade e despolitização da opinião pública.

Outro desafio refere-se à questão da democratização da gestão política e social do país.
Mao formulou e implementou um princípio geral para a gestão política da nova China, que ele resumiu nos seguintes termos: reanimar a esquerda, neutralizar (e complemento: não eliminar) a direita, governar de uma centro-esquerda. Na minha opinião, esta é a melhor forma de pensar em uma maneira eficaz para se movimentar através dos avanços sucessivos, compreendidos e apoiados pela maioria. Desta forma, Mao deu um conteúdo positivo ao conceito de democratização da sociedade combinada com o progresso social no longo caminho para o socialismo.

Os métodos que devem ser implementados para o sucesso não podem ser resumidos em uma única fórmula, válida em todos os lugares e períodos. De qualquer forma, o modelo oferecido pela propaganda da mídia ocidental (multipartidarismo e eleições) deve ser simplesmente rejeitado. Além disso, esse tipo de “democracia” torna-se uma farsa, até mesmo no Ocidente, que dirá em outros lugares.

Para Mao, a “linha de massa” (ir até as massas, aprender sobre as suas lutas, voltar ao topo do poder) era a forma de produzir consenso sobre objetivos sucessivos, constantemente em progresso e estratégicos. Isso contrasta com o “consenso” obtido em países ocidentais, através da manipulação midiática e da farsa eleitoral, o que não é nada mais do que alinhamento com as exigências do capital.

Como deve a China de hoje começar a reconstruir o equivalente a uma nova “linha de massa” nas novas condições sociais? Não será fácil, porque o poder da liderança, que migrou mais para a direita no Partido Comunista, baseia a estabilidade da sua gestão na despolitização e nas ilusões ingênuas que a acompanham. O próprio sucesso das políticas de desenvolvimento fortalece a tendência espontânea de mover-se nessa direção.

O governo da China não é insensível à questão social, não apenas por causa da tradição de um discurso baseado no marxismo, mas também porque o povo chinês, que aprendeu a lutar continuamente e continuará a fazê-lo, força a posição do governo. Se, na década de 1990, essa dimensão social tinha retrocedido ante as prioridades imediatas de acelerar o crescimento, agora essa tendência foi revertida.

No mesmo momento em que as conquistas sociais e democráticas de segurança social estão sendo enterradas no Ocidente opulento, a pobre China está implementando a expansão da segurança social em três dimensões: saúde, habitação e pensões. A popular política de habitação chinesa, mal interpretada pela direita e esquerda europeia, seria invejada, não apenas na Índia ou no Brasil, mas igualmente nas áreas em apuros de Paris, Londres e Chicago.

A segurança social e o sistema de pensões já cobrem 50% da população urbana (que aumentou, recorde-se, de 200 para 600 milhões de habitantes), e o Plano (ainda implementado na China) antecipa o aumento da população atendida a 85% nos próximos anos.

Entretanto, a conquista de benefícios sociais é insuficiente se não for combinada com a democratização da gestão política da sociedade, com a sua repolitização por métodos que fortaleçam a invenção criativa de formas para o futuro socialista/comunista. Isso só poderá ser promovido através de lutas sociais, políticas, e ideológicas, o que implica o reconhecimento preliminar da legitimidade dessas lutas e de legislação baseada nos direitos coletivos de organização, expressão e iniciativas propositivas legislativas. Isso implica também que o próprio partido esteja envolvido nessas lutas; em outras palavras, que reinvente a fórmula maoista de “linha de massa”.

A repolitização não fará sentido se não for combinada com procedimentos que encorajam a conquista gradual de responsabilidades pelos trabalhadores na gestão da sua sociedade em todos os níveis (companhia, local, nacional). Um programa desse tipo não exclui o reconhecimento dos direitos dos indivíduos. Ao contrário, supõe a sua institucionalização. A sua implementação tornaria possível a reinvenção de novas formas de usar eleições para escolher líderes.

Resumo e tradução: Moara Crivelente, da redação do Vermelho